0022/2007 - The knowledge of chagasic patients about their disease: collective construction of a research instrument and test of its applicability
O SABER DO PACIENTE CHAGÁSICO SOBRE A SUA DOENÇA: CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DE UM INSTRUMENTO PARA A PESQUISA E TESTE DE SUA APLICABILIDADE
Author:
• Lucia Maria Ballester-Gil - Ballester-Gil, L.M. - Fundação Oswaldo Cruz - <taniaaj@ioc.fiocruz.br>Thematic Area:
Não CategorizadoAbstract:
We report the experience of construction of a research instrument (guideline for a semi-structured interview) to investigate the knowledge of chagasic patients. A multi-professional team worked on six versions of the guideline. The instrument aims to collect data for a qualitative approach of conceptions and perceptions of the patients under the perspective of human relations in the context of health and life. Some aspects were discussed based on sociological and anthropological practices in public health actions. We performed a complete interview with a patient for testing and adjusting the instrument. Reporting many physical complaints, anguish, depression and anxiety, the patient showed four important knowledge: “the pace-maker is bad and let sequels”, “the heart swells”, “the disease does not have cure”, and that she “will die from this disease”. We identify the individual experiences on the process of getting ill, their knowledge about the disease (and the infection), their emotions, reactions, and affections. The guidelines were adequate for the study of the knowledge of patients, collecting many subjective and cognitive aspects. This can be useful for the development of strategies, actions and information materials that could help to improve and humanize attention and care to the Chagas disease patients.Key Words: knowledge, perceptions, patients, Chagas, interview
Content:
O tema de “concepções e percepções sociais” tem sido tratado na literatura em pesquisa social em saúde1, evidenciando aspectos subjetivos da vivência de pacientes em doenças crônicas através de instrumentos padronizados2 ou por meio de entrevistas abertas3. No entanto, a metodologia qualitativa 4,5, interessante para essa abordagem, ainda carece de instrumentos com amplitude para captar vivências do adoecer, sob a ação de diferentes sujeitos nas equipes multi-profissionais de atenção à saúde. Quais são os aspectos da comunicação, informação, emoção, razão e afetos em cena nessas relações? O objetivo deste trabalho foi construir e testar um roteiro de entrevista para levantar as concepções, saberes e percepções de pacientes com doença de Chagas, levando em consideração o seu processo de adoecimento e enfrentamento da doença. Para tal, compusemos uma equipe multidisciplinar bio-psico-social (os autores) e transformamos gradualmente um “questionário” num roteiro de entrevista que, na perspectiva de uma atenção integrada ao paciente, pudesse nos fornecer elementos para ações de apoio psicossocial e educativas levando em conta seus saberes e necessidades6,.
A doença de Chagas, causada pelo Trypanosoma cruzi é, dentre as chamadas grandes endemias negligenciadas7, a que maior impacto de morbi-mortalidade produz na América Latina8, onde acomete 16 milhões de pessoas. Inserida num novo contexto de globalização9, pelas profundas transformações sociais derivadas do fluxo migratório campo-cidade e entre países, seu controle e tratamento são hoje prioridades da Organização Mundial de Saúde10. Transmitida por diversas vias11, inclusive através de alimentos contaminados, no Brasil há cerca de 5 milhões de infectados em fase crônica12. Eles vivem na expectativa de poderem vir a desenvolver uma das formas clínicas graves da doença, a incerteza quanto à capacidade para o trabalho e muitas vezes desconhecem o processo da infecção. Com elevado custo11, a doença de Chagas é um sério problema social, econômico e político que afeta a população oriunda de extratos mais pobres 8,9,13,14 e requer um enfrentamento integral.
Historicamente no Brasil a educação em saúde referente às grandes endemias consiste em ações de tipo vertical, intervencionista e temporária15. Como para outras doenças crônicas, educação é crucial 16,17,18,19,20 e as abordagens educativas aplicadas à doença de Chagas apresentam três componentes21: (1) a prevenção primária, com educação visando prevenção da infecção em áreas endêmicas com transmissão ativa e promoção de conscientização para vigilância epidemiológica onde a transmissão vetorial já tiver sido controlada; (2) a prevenção secundária, com educação de pessoas infectadas, visando seu engajamento pleno e ativo no acompanhamento da evolução de seu quadro e de envolvimento em sua terapêutica, para prevenir a mortalidade e o agravamento da doença; e (3) a prevenção terciária, com ações e estratégias de limitação da incapacidade dos pacientes e de reintegração do indivíduo na sociedade.
Poucos trabalhos tratam de educação para prevenção secundária e terciária de pacientes com doenças negligenciadas22,23,24,25,26. Há necessidade de novos instrumentos para ações educativas, construídas com base num conhecimento da cultura e do nível educacional dos sujeitos que se quer atingir, bem como de avaliação de seu impacto. Impressos hospitalares tendem a refletir a experiência do profissional do atendimento 6, a partir de seu estereótipo sobre a clientela, suas carências e necessidades. O resultado é quase sempre uma visão distorcida dessa clientela, subjugada pela falta ou escassez de recursos materiais, culturais e simbólicos. O conhecimento é repassado ao paciente num modelo informativo, restrito ao diagnóstico e terapia27.
O campo da Educação em Saúde vem formulando críticas e alternativas de ação ao modelo de prevenção tradicional28. Um dos objetivos da educação em saúde é o de facilitar a autonomia, isto é, o poder de decisão dos indivíduos sobre suas vidas ou o máximo controle sobre seu próprio destino, que inclui, necessariamente, uma dimensão cultural e ética 29. O processo de produção da saúde/doença/intervenção passa a ser entendido no contexto de seus determinantes sócio-históricos, como também do auto-reconhecimento e potencialização das capacidades individuais e grupais. A doença de Chagas humana 8,9,14, numa visão integradora, transcende em muito o fato biológico da presença do parasita no indivíduo infectado, e se apresenta com elementos e fatores de risco políticos e sociais marcantes, como a habitação, os fatores de produção, o sistema de saúde, a educação, as ligações políticas e internacionais. Estudos antropológicos ganham espaço3, 30 e apontam problemas não abordados nas vertentes biomédicas clássicas. Estudos clínicos mostram necessidades de campanhas de esclarecimento e informação ao paciente chagásico sobre riscos diversos 31,32. Torna-se imperativo investigar de forma holística a realidade do paciente chagásico enquanto cidadão, em um contexto bio-psico-socio-cultural. Não se trata de uma transposição de campos, porém da necessidade de um esforço de reconstrução do enfoque médico a partir da dimensão humana, com o resgate do apoio psicológico, importante para o paciente chagásico 2,3,8,9,12,13,33,34. A consciência de portar uma doença que está muitas vezes relacionada à morte súbita, traz ao indivíduo chagásico grande angústia3. Em alguns relatos33 esse aspecto torna-se mais dramático, quando o indivíduo descobre a infecção ao realizar exame para doação de sangue: para um ato de solidariedade ele recebe uma notícia opressora e excludente que o rotula como vítima. Em geral, os pacientes chagásicos sabem muito pouco sobre a doença e se sabem algo, são mínimas a possibilidade de definir a real direção de sua vida, suas condições de saúde e sobrevivência33. A contribuição da antropologia torna-se aqui fundamental, indicando a necessidade de humanização e algumas reflexões teórico-filosóficas 3,33. Os profissionais de saúde apresentam uma percepção específica, e não necessariamente próxima a do paciente, daquilo que é relevante e problemático, do que causa ou evita um problema, e do tipo de ação que esse problema requer. Essa visão é determinada pelo seu conjunto de conhecimentos biomédicos. Já para os pacientes, indivíduos leigos de uma comunidade ou grupo, esta percepção é determinada por redes de símbolos que articulam conceitos biomédicos e culturais, e determinam formas características de pensar e de agir em face de um problema de saúde 3,30,35. E, obviamente, os profissionais de saúde, quando se relacionam com pessoas ditas “leigas”, não são professores a escrever em um livro de páginas em branco.
Nosso trabalho encontra-se ancorado aos pressupostos teóricos de Freire36, Briceño-Leon37, Kübler-Ross38, Valla 39,40 e Stotz35 pelo vínculo e compromisso com a emancipação das classes populares, em defesa da vida. A aproximação com o paciente deve estar pautada na vivência e subjetividade que exige a possibilidade de relações dialógicas e a socialização dos saberes, dentro das possibilidades e limites dos sujeitos em cada momento.
Segundo Briceño-Leon 8,13,37 a interpretação da saúde ocorre como um momento de uma realidade social. Portanto, inclui condições de vida dignas e saudáveis, de acordo com os conhecimentos que hoje usufruímos nas condições históricas em que vivemos. No caso da doença de Chagas, o acompanhamento do indivíduo assintomático, que sabe ter a infecção, mas não sabe quando, ou se, a doença vai se manifestar, é um desafio adicional para o manejo clínico, que lida mais frequentemente com pacientes na formas cardíaca ou digestiva, ambas com grande impacto na sua vida11. Os estudos de Kübler-Ross38 sobre pacientes crônicos contribuíram para a compreensão de que, ao fornecer ao paciente informação clara quanto ao seu diagnóstico, o profissional de saúde deve deixar portas abertas à esperança, sobretudo, quanto ao uso de novos medicamentos, novos tratamentos, novas tecnologias e pesquisas. A aproximação médico-paciente é fundamental para situações em que sua doença crônica exigirá mais atenção e persistência no tratamento, buscando encorajá-lo a retornar para outras consultas. O conforto, verbal ou não, se não contribuir diretamente para prolongar a vida, ao menos poderá criar possibilidades de acolhimento. O essencial é comunicar ao paciente que não deverá abandonar o acompanhamento ou tratamento por causa de um diagnóstico grave. Nesse campo, tomaremos como pressuposto teórico as teses de Freire36 de que “a educação deve ampliar e não restringir”, e de que “é necessário darmos oportunidade para que os sujeitos sejam eles mesmos; caso contrário, domesticamos, o que significa a negação da educação”. Ao possibilitar o domínio dos conhecimentos culturais e científicos, a educação socializa o saber sistematizado e desenvolve capacidades cognitivas e operativas dos indivíduos para a atuação no trabalho e a luta pela conquista dos direitos de cidadania. Correntes de pensamento pautadas em teorias educacionais que preconizam a participação, de cunho construtivista, e a orientação libertadora, tendo como base as relações dialógicas, devem resultar na ampliação da consciência e na aquisição de habilidades. Trata-se dos elementos essenciais para a formação de cidadãos capazes de uma participação efetiva na vida social36.
Metodologia
Usamos a abordagem qualitativa4,5,41 na qual o pesquisador tem consciência crítica sobre possibilidades de interferências, que podem comprometer a qualidade dos dados em razão de sua subjetividade e do caráter do fenômeno investigado. O material primordial é a palavra que expressa a fala cotidiana, seja nas relações afetivas e técnicas, seja nos discursos intelectuais, burocráticos e políticos. A abordagem qualitativa aproxima sujeito e objeto 4,5, uma vez que ambos são da mesma natureza: ela se desenvolve com empatia aos motivos, às intenções, aos projetos dos atores a partir dos quais as ações, as estruturas e as relações se tornam significativas. Como não se chega ao contexto da vida separadamente da relação direta e indireta com o pesquisado, é no campo da subjetividade e do simbolismo que se afirma a abordagem qualitativa.
Com base estudos anteriores 42,43,44 preparamos um instrumento para levantamento das concepções dos pacientes, um roteiro de entrevista com modelo semi-estruturado, com perguntas abertas e objetivas para uma conversa gravada. Seguimos a proposta de Queiroz 45, na qual o diálogo entre pesquisador e o entrevistado tem por objetivo a coleta de informações precisas sobre determinado problema, por meio de perguntas e respostas efetuadas de maneira direta, tanto quanto possível; o pesquisador define sempre de antemão, em detalhe, o que está procurando. A entrevista com roteiro oferece certo grau de liberdade, quando disponibiliza o discurso do entrevistado sobre seus problemas todas às vezes que o pesquisador percebe uma divagação para rumos totalmente diversos; trata-se, pois, de dosar as intervenções. Mas também neste caso o pesquisador segue um caminho pré-determinado, e suas intervenções são no sentido de conduzir ao caminho no qual a investigação está concentrada. Atualmente, este tipo de entrevista com roteiro tem sido preferido ao diálogo de entrevista aberta3, pois apresenta a vantagem de colher dados desejados com maior espontaneidade por parte do entrevistado. Está inspirada no modelo dos “sistemas de signos, significados e ações”30 quando se investiga aspectos sociais, culturais e experiências que intervêm na identificação do que é problemático, bem como na elaboração de estratégias para a solução dos problemas. E adota a perspectiva de Bourdieu46 , que nos alerta que o pesquisador deve procurar se colocar no “lugar” do pesquisado.
A análise dos dados é a etapa final para articular os dados e os referenciais teóricos respondendo às questões da pesquisa com base em seus objetivos 4,5. O trabalho de conhecimento social tem que atingir três dimensões 47: a simbólica, a histórica e a concreta. A dimensão simbólica contempla os significados dos sujeitos, a histórica privilegia o tempo consolidado do espaço real e analítico, e a concreta refere-se às estruturas e aos atores sociais em relação. Para analisar os dados, após as entrevistas, transcrevemos as fitas, realizamos uma primeira leitura do material, organizamos os relatos, revimos objetivos e questões teóricas discutidas no estudo 4.
RESULTADOS
Descrição do processo de construção compartilhada do roteiro de entrevista
O roteiro se transformou de modo dinâmico, nos oito encontros foram registrados, desenvolvendo as seguintes etapas formadoras do roteiro: 1. Elaboração da lista de perguntas, baseadas no roteiro de prontuário do Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (IPEC) e outras; 2. Numeração das questões totalizando 21 perguntas; 3. Classificação das perguntas por blocos (dados pessoais, aspectos cognitivos, sócio-econômicos e emocionais); 4. Adequação da redação das perguntas à linguagem coloquial; 5. Reorganização do roteiro priorizando o aspecto emocional, buscando ampliar a possibilidade de registro da reação do paciente ao diagnóstico, bem como o enfrentamento do problema; 6. Inserção de três momentos na entrevista: preocupação com o acolhimento (apresentação), o desenrolar (perguntas), e a despedida, situando então expectativa de outros encontros; 7. Definição de inserção do gravador para registro da entrevista, sem registros escritos durante as conversas; escolha do momento da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE): após a apresentação e explicação do projeto, quando da informação dos dados pessoais; 8. Definição de uma possibilidade de retorno do paciente para saber dos resultados da pesquisa; 9. Definição da proposta do uso de um instrumento de lembrança para o paciente (um impresso sobre a pesquisa e seus resultados); 10. Definição de questões operacionais: a participação do paciente seria opcional, após uma consulta médica; o anonimato seria garantido; cada entrevista deveria se desenvolver por 40 minutos, mas com a flexibilidade que pudesse atender ao interesse do paciente até sua finalização; o TCLE, explicado e lido para o paciente, introduzia: “Você está sendo convidado para participar de uma pesquisa para esclarecer quais são os saberes e percepções dos pacientes portadores de doença de Chagas sobre a sua doença. Com base nesses resultados, pretendemos colaborar com a equipe do IPEC na organização de uma sala de convívio para pacientes, bem como fornecer dados para outras pesquisas em benefício da melhoria da qualidade dos serviços hospitalares prestados”; após a assinatura do TCLE não haveria necessidade de qualquer registro escrito: com o roteiro e o gravador, o entrevistador se concentraria em deixar o paciente a vontade para as respostas, e organizaria posteriormente os dados gravados segundo as categorias pesquisadas. O projeto completo prevê estudos com pacientes em primeira consulta, com pacientes internados e com pacientes com mais de um ano de submissão a tratamento etiológico ou sindrômico. Dois instrumentos de intervenção (acessórios) foram preparados: um álbum de imagens fotográficas relativas a doença de Chagas e um quadro de insetos para identificação de vetores.
No decorrer dos encontros foram construídas seis versões do roteiro, destacando-se a última por ter uma maior preocupação com o acolhimento ao paciente antes do inicio da entrevista (ver Anexo). Testou-se uma sétima versão, revisada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) , e uma oitava versão é a que consideramos como final, a ser adotada em estudos posteriores. As 50 perguntas propostas foram distribuídas em 4 blocos: (1) o Acolhimento, quando o entrevistador se apresenta, apresenta a pesquisa, colhe e/ou confirma sobre dados pessoais, e procura criar um ambiente de confiança para que ele/ela possa falar e também perguntar; (2) a Coleta principal de dados, com perguntas sobre: (i) sua saúde, (ii) sua reação ao diagnóstico, (iii) seu sentimento em relação à doença; (iv) as relações da doença com familiares e conhecidos, (v) as expectativas e temores, (vi) suas queixas e problemas físicos, (vii) suas percepções sobre discriminação ou prejuízos, (viii) seus conhecimentos sobre o que se passa com ele durante a doença; (3) a Despedida, com perguntas sobre sua relação com o hospital e seus diversos serviços, e sobre a relação com a ciência e a produção de conhecimento; e (4) a Confirmação de dados sócio econômicos. O Anexo apresenta na íntegra o roteiro de entrevista desenvolvido.
Roteiro modificado após análise do Comitê de Ética em Pesquisa e testado
Submetido ao CEP (protocolo 0054.0.009.011-05) o roteiro construído foi considerado extenso e, como requisito para aprovação, foi modificado para apenas dois blocos: (1) Acolhimento e coleta de dados pessoais e sócio-econômicos, com 27 itens, e (2) Percepções e saberes do paciente sobre sua doença e atendimento, com 16 itens. As intervenções educativas previstas também foram adiadas para um momento posterior ao estudo. A versão foi testada em dezembro de 2007, com paciente de primeira consulta, para identificação de potenciais ajustes, antes de ser aplicado no estudo com um número maior de indivíduos. Após a consulta clínica, a entrevistadora foi apresentada à paciente pelo médico na porta do consultório. A entrevista foi conduzida no setor de abertura de prontuário, gravada e depois integralmente transcrita, com registro do tempo total utilizado. O TCLE foi explicado à paciente, e assinado no inicio do trabalho.
Muito generosa e disponível para participar da entrevista, a senhora GMJS, mineira de 66 anos, nos dedicou 40 minutos para a conversa, 5 usados no primeiro e 35 minutos no segundo bloco de perguntas. Esse tempo foi suficiente para incluir a fala de temas não constantes do roteiro, de interesse específico do paciente, emoções que geraram silêncios e momentos de choro pelo relato de alguns de seus sofrimentos cotidianos. Ela considerou positiva a oportunidade para falar aberta e francamente sobre o seu problema e, indagada por diversas vezes sobre se queria interromper a entrevista, preferiu continuar.
O roteiro de entrevista mostrou-se eficaz para propiciar o diálogo e as perguntas de acolhimento funcionaram adequadamente. Após a confirmação de nome e idade, perguntamos explicitamente se tinha mais alguma dúvida, se tinha compreendido o objetivo da pesquisa e se podíamos começar, tendo sua anuência. A paciente nos relatou que era natural de ([...] Bom Despacho. A minha família é toda de lá [...]); que é divorciada, que sabia escrever seu nome ([...]leio muito pouco[...]), que morava sozinha no bairro da Ilha do Governador, e que vivia no Rio de Janeiro há mais de 40 anos (“[...]vim para o Rio muito nova”). Relatou que é “aposentada do lar” e tem renda mensal de um salário mínimo. Questionada sobre se precisa de ajuda financeira de outra pessoa, respondeu “Sim, mas não peço nada às minhas filhas. Cada um tem a sua vida. Tenho muitas necessidades. Mas como vivo sozinha com um salário mínimo procuro gastar somente o suficiente para viver. Moro na favela e lá é tudo pobreza.” Sobre seus dados habitacionais (casa própria ou alugada), respondeu: “Eu moro[...] no começo da favela. Lá é posse.” Sobre as condições de abastecimento de água seus comentários foram: [...] a água é nojenta pra caramba. É uma água que vem de uma caixa da comunidade [...] que é distribuída pro pessoal. Acho que não tem tratamento não. A caixa é imensa. E pelas pessoas que tomam conta [...]. Eu to querendo comprar aquelas águas de garrafão, já que é eu sozinha. [...]. Relatou ter esgoto, coleta de lixo e luz elétrica.
Finalizamos com a pergunta sobre dificuldades físicas para trabalhar e sobre o recebimento de benefícios. A paciente respondeu: “Sinto uma fraqueza igual a quando se volta do hospital. Falta de ar, cansaço, dor nas pernas e o meu coração tem batido rápido demais. Estou muito triste penso que vou morrer todo tempo. Depois que recebi o meu resultado minha vida mudou. Não quero morrer. Bem eu perguntei para o médico e ele disse que é preciso fazer exames...depende do caso e no meu, pelo estado, vou ter que colocar um marca-passo. Eu sei dos efeitos do marca-passo na pessoa é muito ruim e a cirurgia é complicada. A pessoa fica com o coração fraco... Não conhecia possíveis benefícios e direitos, não tinha cartão do SUS, não tinha plano de saúde privado, não participava de nenhum grupo de apoio à terceira idade e nem do programa de acompanhamento a hipertensos.
Confirmamos que essa última pergunta realmente deveria ser a final do primeiro bloco, pois introduz as questões da sensação do paciente com o diagnóstico e a doença, possibilitando uma articulação com as perguntas do segundo bloco. Aqui houve grande riqueza de dados, e algumas perguntas tiveram que ser reformuladas para que a paciente compreendesse o que se queria saber. Descreveremos tanto as alterações feitas nas perguntas, como a respostas obtidas.
As três primeiras perguntas (1-“Como a senhora ficou sabendo que é portadora da doença de Chagas?; 2-“De que forma conseguiu o atendimento no IPEC?”; 3- “A senhora se lembra quem lhe forneceu o resultado dos exames? O que a pessoa lhe disse na ocasião?” ) tiveram que ser reformuladas para: 1- “Como a senhora chegou até o hospital para fazer a consulta?” R: Eu peguei um encaminhamento do Hospital Público. Aí eu já sabia que aqui se estuda muitas doenças e eu vim; 2- “A senhora recebeu o resultado hoje?” R: Eu já tinha recebido. Ele me deu e marcou a consulta pra hoje. No exame que foi feito aqui está parecendo doença de Chagas. Nos outros exames eu fiz um eco, um eletro, e aí o médico tá com dúvida. É que estou com um batimento meio assim estranho. (pausa, em silêncio). Eu tenho sentido muita coisa. E o médico acha que não é só das Chagas. Ele pediu estes exames todinhos para tirar as dúvidas. O médico foi atencioso comigo e muito educado.
A pergunta 4 ( “A senhora recebeu algum tipo de informação sobre a sua doença durante as consultas?”) foi adaptada para: 4- A senhora recebeu algum material de informação aqui no hospital? R- Não. Eu teria vontade de receber assim uma orientação, assim uma leitura que é pra mim saber o que traz essa doença. O que pode e o que não pode na doença de Chagas.
As perguntas 5 e 6, sobre aspectos de seus saberes sobre a doença (5-Por que a senhora acha que adoeceu?; 6-O que a senhora sabe sobre a sua doença?) foram adaptadas para: 5- A senhora sabe o que é doença de Chagas? R- Sei é do barbeiro. O coração fica fraco e grande. Sei. Eu tenho parentes que tem. Eu tenho duas irmãs que tem. Meus pais morreram com problema de coração mais duas irmãs. É só isso que eu sei; 6- O que mais a senhora sabe sobre doença de Chagas se precisasse dar uma informação para outra pessoa? A informação que tenho das chagas e que ela não tem cura. A informação que eu ouvi é essa que não tem cura. Ela pode alojar no coração e pode também no intestino. Eu tenho muita prisão de ventre também, demais. Quer dizer que é a única coisa que eu fiquei sabendo. Mais coisa assim, eu não sei outras causas que pode surgir não.
As perguntas 7 e 8, sobre a sua saúde, dores, sensações, reações ao diagnóstico e à sua condição de paciente com doença de Chagas ( 7-Como está a sua saúde ultimamente? Sente alguma dor?; 8- De que forma a senhora reage a esta doença?), foram as que possibilitaram maior expressão da paciente frente à problemática da doença: 7- Nos últimos tempos, com está a sua saúde? R-Meu coração está diferente. A minha pressão está alta. Tenho dificuldade para engolir e tenho dor aqui perto do estômago. Parece uma hérnia...Tenho fraqueza, eu sinto fraqueza. Quando eu como, eu me sinto mais fraca. Quando eu como. Eu tenho uma hérnia no esôfago. Uma hérnia umbilical. Tenho úlcera varicose. Eu tenho osteoporose, artrose. Eu sou toda complicada. Onde estou mais nervosa é por causa disso. Se eu tenho medo de colocar um marca-passo. A gente vê e escuta na televisão. Eu sei que não tem cura. O marca-passo é uma cirurgia para melhorar, mas tem efeitos que prejudicam. O caso do marca-passo pode ser um grande sucesso para pessoa, mas pode trazer grandes seqüelas também... Quer dizer, aí eu fico nervosa com aquilo. Porque além de eu ter tantos [problemas], que se eu não tivesse nada desses negócios e outros problemas. Se eu fosse uma mulher saudável, e só isso, eu não teria me incomodado de colocar um marca-passo. Eu sou alérgica então tenho medo de tudo e de colocar um marca-passo. E de não me sentir melhor e piorar a minha vida. Mas com o tempo eu fico nervosa. Eu estou com uma hérnia para operar, uma úlcera varicosa. O médico disse que quando a ferida fechar ele vai me operar. Eu tenho cada varize desse tamanho (mostrou as pernas direita e esquerda, e fez uma pausa); 8- Como você se sente com essa doença? R: Eu me sinto muito triste. Choro muito. Estou desanimada. Não tenho vontade de falar ver ninguém. Fico pensando que o meu coração está inchado, sinto mais coisas do que antes. Falta de ar, moleza, cansaço. Minha vida mudou. Bem eu perguntei para o médico e ele disse que é preciso fazer exames...depende do caso e no meu, pelo estado, vou ter que colocar um marca-passo. Eu sei dos efeitos do marca-passo na pessoa é muito ruim e a cirurgia é complicada. A pessoa fica com o coração fraco... (pausa com silêncio; choro por mais de 1 minuto). Estou abalada, não quero falar com ninguém. Fico sozinha pensando que posso morrer. Eu choro muito todos os dias e fico descontrolada. Choro até ficar sem ar. Não sei como tive forças para vir hoje. Foi a minha primeira consulta. O médico foi educado me tratou bem. Ele me confortou muito e explicou que tem tratamento. Ele me preparou. Mas, eu saí daqui desesperada. Ele conversou comigo. Ele perguntou onde morei. Sei, morei em casa de barro. Se eu morei em casa de estuque ou sapê. [...]. Ele conversou muito. Ele foi muito bacana. Foi bacana demais, demais. Eu sei que esta doença não tem cura. Eu sei que vou morrer. Estou triste minha vida mudou desde que recebi o resultado. Eu ouvi que a doença de Chagas não tem cura e sei que vou morrer. Minha família, irmãs e pais, morreram com problemas de coração lá em Minas Gerais. Eu tenho filhas e netas, mas cada um tem sua vida. Eu não posso nem quero atrapalhar. Quando recebi o resultado senti um aperto no peito e minhas pernas doem. Essa dificuldade e dor me causam muita tristeza eu sinto o meu coração batendo forte. O doutor explicou como é a doença e os exames, mas apesar dele ser educado mesmo e me confortou muito eu sei que vou morrer... (fala direta por 3 minutos, seguida de silêncio por cerca de 2 minutos; perguntamos se queria interromper a entrevista, e ela respondeu: “Não. Não”; para recomeçar perguntamos se ela estava melhor: R:“Estou muito abalada dos nervos desde que recebi o resultado. Não quero morrer.”, e seguiu-se uma nova pausa para choro, por cerca de 1 minuto; perguntamos o que lhe passou pela cabeça quando soube do diagnóstico; R: “Eu estou desesperada. (pausa com silêncio) Minha vida mudou muito, vivo triste e chorando não quero me alimentar. Sei que vou morrer... Encadeamos a pergunta: “Mudou algo na sua vida após o resultado dos exames?” e a resposta foi: Muito. Um desânimo tomou conta de mim... Eu não tenho amigos e não faço parte de nenhum grupo de terceira idade...
As perguntas 9 e 10, sobre enfrentamento e tratamento (9-Qual é o principal problema que a senhora enfrenta com a doença de Chagas?; 10-Qual é o tipo de tratamento e/ou remédio que usa?) foram respondidas em parte na fala da paciente às perguntas anteriores; por isso complementamos: 9- O que você acha que vai lhe acontecer daqui para frente com essa doença? R: Vou piorar até se conseguir fazer a cirurgia. Sei que não tenho muito tempo mais pela frente...; 10- Você teme alguma preocupação por causa dessa doença? R: Não quero morrer...
A pergunta 11, referente a seu acesso ao hospital (11- A senhora tem alguma dificuldade para comparecer as consultas? Quais?) foi adaptada: 11- Como você foi recebida no hospital? Ocorreu alguma dificuldade? O que você espera do atendimento no hospital? R:- Eu não tive dificuldade para chegar é que eu tenho o cartão do idoso. Não pago passagem. A única coisa que me incomodou é que estou com fome, cheguei muito cedo. Mas trouxe um biscoitinho e bebi água. Estou fraca. (interrupção para a paciente mostrar todos os exames que deverão ser realizados). Eu estou triste e penso toda hora que vou morrer. Depois que recebi o resultado naquele dia fui para casa com as pernas tremendo. Estou chocada e procuro não falar com ninguém, estou ficando isolada.
As perguntas 12 e 13, referentes aos Serviços do hospital (12- A senhora conhece os serviços oferecidos no hospital para pacientes?; 13. A senhora tem dúvida sobre a sua doença? A quem procura no hospital para se informar mais?) foram feitas assim: 12- A senhora conhece os outros serviços oferecidos pelo hospital? R:-Não. Não conheço (seguiu-se pausa com choro de cerca de 1 minuto); 13- A senhora gostaria de ser encaminhada para o Serviço de Psicologia? R:- Para que? Para fazer tratamento de nervos? (seguiu-se um esclarecimento da entrevistadora sobre os serviços de psicologia e o serviço social; perguntamos se tinha sido informada sobre sua existência) R:- Não. Mas, as minhas irmãs em Minas ela tem. Eu não sei. (pausa com choro, por cerca de 2 minutos)[...] Futuramente eu quero. Só que agora tenho que fazer os exames eu estou muito abalada. Quando tiver melhor [...] Eu só fico pensando que vou morrer. Isso não sai da minha cabeça o tempo todo.
A pergunta 14, sobre tratamento, foi adaptada em virtude de ser primeira consulta e ainda não ter sido prescrito tratamento. Perguntamos então se: 14- A senhora depois que recebeu o resultado procurou algum tipo de ajuda? Médica, religiosa, grupo de amigos? R:- Não procurei. Eu não falo com ninguém. Nada vai adiantar. Eu não posso atrapalhar a vida das minhas filhas. Elas trabalham. [...falas sobre familiares] E eu me sinto sozinha muito presa. Fico dentro de casa. Eu era assim...Eu sempre fui uma pessoa muito forte. Tudo eu...Eu fazia...[...] Eu sempre fui uma pessoa muito forte. Sempre dei fortaleza para outra pessoa. Conforme eu estou hoje, agora eu não consigo. Não me sinto legal sabe. Eu não sei o que está acontecendo comigo. (a pesquisadora sugeriu término da entrevista, mas a paciente insistiu em continuar, falou “eu quero desabafar”, fazendo um gesto indicativo de que estava com uma angústia no peito).
As duas últimas perguntas marcam a despedida da entrevista (15- A senhora gostaria de fazer alguma pergunta? Qual?; 16- A senhora gostaria de apresentar ou fazer alguma sugestão para melhorar o atendimento que é prestado aos pacientes?). Optamos por não fazê-las explicitamente, para encerrar a entrevista, agrademos a sua participação, reafirmando que essa participação será muito importante para o estudo. A paciente respondeu: “Eu também gostei muito. Quero o telefone do serviço de psicologia. Depois eu ligo” Perguntamos: Aonde a senhora vai agora? R: Eu vou para Farmácia. Onde é? E decidimos acompanhá-la.
Discussão
O teste do roteiro proposto nos permite tecer considerações sobre a natureza e a qualidade dos dados registrados, e nos leva a concluir que o instrumento está adequado para a coleta de dados sobre os saberes e percepções de pacientes chagásicos, e que poderá ser aplicado para subsidiar futuros trabalhos direcionados às práticas de pesquisa em serviço, numa abordagem de pesquisa qualitativa.
Sobre o perfil do paciente, captamos adequadamente os dados pessoais, com a reconstrução da sua trajetória no serviço de saúde. Ela havia sido atendida em outro hospital da rede pública, onde exames demonstraram insuficiência cardíaca e comprometimento do esôfago, suspeitando de doença de Chagas. Com essa suspeita diagnóstica que levou ao seu encaminhamento a Fiocruz, com o exame sorológico realizado há um mês, aguardando a confirmação de soropositividade para T. cruzi, a primeira consulta se reveste de grande expectativa quanto ao diagnóstico e ao prognóstico da paciente. Chegou à Fiocruz por conhecer a instituição como referência para tratamento da doença de Chagas (“ ...eu já sabia que aqui se estuda muitas doenças e eu vim...”). Minas Gerais, onde a doença de Chagas foi descoberta, é um dos estados brasileiros com maior prevalência da doença 48. Bom Despacho, a cidade onde nasceu a paciente, faz parte da Gerência Regional de Saúde de Divinópolis, região em fase de vigilância do controle, mas apesar disso os agentes de saúde que atuam no controle afirmam que a população não reconhece facilmente os triatomíneos48.
Sobre as percepções e queixas, a entrevista detectou conceitos relativos à vida, saúde, direitos e o drama que é portar uma doença considerada incurável. Ela expressou livremente qual sentido esta doença representa em sua vida no momento. O roteiro obteve sucesso no objetivo de motivar a paciente a refletir sobre os aspectos sociais, históricos e culturais associados à sua doença, quando convidada a responder questões sobre sua história de vida. Sua fala revelou seu perfil sócio-econômico e evidenciou um grande volume de queixas físicas (“tenho...pressão alta, ...dificuldade para engolir, ... fraqueza, ... hérnia, ...úlcera varicosa, ...osteoporose, ...artrose, ... eu sou toda complicada”). Essa característica do paciente chagásico como “poli-queixoso” já foi detectada na experiência clínica do Serviço de Psicologia do IPEC e merece investigação mais detalhada.
Sobre os aspectos psicológicos os dados evidenciaram alguns problemas tais como: tristeza, angústia, depressão e ansiedade, percebidas em relatos de sintomas como “vivo triste”(tristeza foi citada 6 vezes na entrevista); “estou desesperada [...] estou abalada” (angústia); “não tenho vontade de falar, ver ninguém [...] eu choro muito, todos os dias [...] choro até ficar sem ar (depressão); vou morrer [... ] vou piorar até se conseguir fazer a cirurgia (ansiedade negativa). Esses dados indicam que o instrumento é adequado para captar aspectos psicológicos dos pacientes de modo a possibilitar um estudo aprofundado do componente psíquico da doença de Chagas, que não podem ser abordados por exames clínicos ou complementares como os componentes cardiológicos e imunológicos da doença.
Sobre seus saberes, verificamos que a paciente dispunha de quatro saberes básicos sobre a sua doença (“eu sei”), muito arraigados e dos quais falava com muita segurança: “o marca-passo é ruim e deixa seqüelas”, “o coração incha”, “a doença não tem cura”, e que “vai morrer [dessa doença]”. Todos estes saberes foram expressos com autonomia e grande carga emocional, decorrente do diagnóstico. Alguns desses saberes representam pré-concepções equivocadas, como por exemplo, a idéia de morte, pois 70 a 80% dos pacientes infectados permanecem assintomáticos por toda a vida e morrem de outras causas11. Repetida espontaneamente doze vezes, essa certeza sobre o morrer pode ser fonte de grande ansiedade e angústia para a paciente. Pacientes submetidos a implante de marca-passo3 também apresentam essa idéia de que a doença de Chagas é a doença “que mata de repente”, dissociando o saber cultural do paciente do saber cientifico, que comprova que a morte súbita ocorre apenas em 10% dos portadores da forma cardíaca, que por sua vez são apenas 25 % dos indivíduos infectados.
A ansiedade também pode surgir do saber sobre a cardiomegalia chagásica (“fico pensando que meu coração está inchado”), que naquela primeira consulta sequer estava confirmada. Saber que a “doença não tem cura”, repetido sete vezes durante a entrevista, pode ter o mesmo efeito. Portanto, o roteiro de entrevista mostrou-se adequado para captar esses aspectos e, se um estudo quantitativo confirmar uma razoável freqüência desses saberes, poderá ser proposta uma intervenção de comunicação em campanhas informativas para minimizar o efeito negativo que tal percepção possa causar nos milhões de indivíduos infectados que, ao se saberem portadores do parasita, se auto-rotulam e são rotulados como portadores de doença grave e incurável mesmo que sejam apenas portadores assintomáticos e não efetivamente doentes. A possível carga emocional desse diagnóstico já foi abordada na literatura 2,3,13,22, e pode introduzir um componente simbólico importante que merece ser investigado com maior profundidade. Storino33 defende que sejam valorizados os aspectos psicossociais dos portadores da doença de Chagas, ressaltando que há uma grande diferença entre ser e estar doente, sendo o estado transitório ou permanente da doença fundamental na formação da identidade do indivíduo.
Através das perguntas abertas, o roteiro permitiu que a paciente se libertasse de responder apenas às perguntas colocadas e passasse a discorrer com clareza sobre o que a doença estava significando na sua vida naquele momento. Ao mostrar a lista dos exames que teria que fazer e dos próximos passos a seguir, a senhora GMJS mudou da postura de “paciente que espera o atendimento” para a “usuária dos serviços que lhe foram apresentados e oferecidos”. No entanto, apesar de seu conjunto de queixas, ela apresentou desinformação quanto à: (i) programas públicos de atenção básica, a exemplo do programa de hipertensão; (ii) seus direitos como usuária do SUS, pois não dispunha de cartão de atendimento; (iii) os serviços do IPEC (“não, não conheço”); (iv) seu direito a lanche no IPEC, pois comentou que estava incomodada com a fome, por ter chegado muito cedo para a consulta (quando não seria necessário, pois a consulta estava previamente agendada com horário marcado por sistema informatizado).
A paciente expressou interesse em conhecer maiores informações sobre a doença de Chagas. Além disso, destacou ausência de materiais para orientação sobre o tema e indicou a importância de entregar materiais informativos a outros pacientes no momento da consulta. Oliveira Jr34 utiliza uma “Cartilha do portador de doença de Chagas” e outros materiais educativos. Com a aplicação do instrumento de pesquisa por nós produzido e testado, poderão ser investigados com maior profundidade os saberes, dúvidas e expectativas dos pacientes e um material apropriado poderá vir a ser desenvolvido, tal como proposto6.
A paciente associava o tipo de habitação com a infestação pelo barbeiro: casa de estuque ou sapê. Por outro lado, também apresentava concepções distorcidas sobre o conceito de vetor e parasita. Constatamos ausência de informações espontâneas sobre formas de transmissão da doença, com a paciente confundindo causa (infecção pelo parasita) e transmissão (vetor) com a mesma entidade: “o barbeiro”. Este fato nos levou a refletir sobre a possibilidade de associar ações educativas a momentos de presença dos pacientes nos serviços de saúde, de modo a aumentar sua educação em saúde e sua alfabetização cientifica.
Sobre as condições da realização da entrevista, pelo fato de ter sido realizada em paciente de primeira consulta num local adjacente ao Serviço de Registro e Prontuário médico, verificamos que o ideal seria a realização em sala reservada e específica para o acolhimento dos pacientes chagásicos, a ser introduzida fisicamente de modo integrado ao percurso que o paciente deve fazer entre os diversos setores do hospital: consultório, registro, entrevista, farmácia, laboratório. Essa já será uma proposta de intervenção no serviço decorrente deste estudo.
Outro aspecto que merece discussão é a necessidade de aperfeiçoamento da linguagem do Termo de Consentimento (TCLE) no momento de apresentação da pesquisa e de sua assinatura. Quando da sua leitura, percebemos que o item “o problema investigado”, que se refere ao “objeto de estudo”, foi entendido pela paciente como “o seu problema a ser investigado”, pois ela estava de fato enfrentando o “problema” de ter acabado de constatar ser portadora de doença de Chagas e de ter sido encaminhada para “investigações” com a solicitação de exames complementares. O texto do TCLE deve ser alterado para facilitar a compreensão e o esclarecimento dos pacientes.
O grau de mobilização emocional da paciente também nos sugeriu que, para as demais entrevistas, seria bastante interessante contar com a presença de um profissional de psicologia. Apesar disso já estar previsto no projeto, a necessidade prática de deslocar fisicamente a paciente de um setor do hospital (consultórios no ambulatório) para outro (psicologia) não viabilizou a proposta e indicou a necessidade de um remanejamento de espaço adjacente ao consultório para que a entrevista pudesse transcorrer com maior conforto e tranqüilidade.
Proposta de roteiro após o teste
O teste realizado com o roteiro de entrevista aprovado pelo CEP nos remete a dois aspectos que merecem ser discutidos: (1) as evidências de que a relação dialógica para a captação de dados com pacientes chagásicos precisa ser construída no contexto de uma pesquisa/ação, que associe coleta de dados e intervenção informativa e educativa, necessárias frente ao conjunto de dúvidas e angústias expressas pelos pacientes; e (2) as evidências de que, apesar de adequado em diversos aspectos, o roteiro testado precisa de ajustes, especialmente quanto à linguagem da formulação das perguntas e ao seu ordenamento, situando a necessidade de maior flexibilidade do entrevistador quanto às perguntas, na condução do diálogo.
A proposta inicial de realizar uma pesquisa/ação, em que ao mesmo tempo da coleta de dados fosse possível realizar alguma intervenção educativa, foi bastante alterada pelas sugestões do CEP, restringindo as intervenções inicialmente propostas (o álbum de imagens fotográficas e o quadro de insetos). A emotividade deflagrada pelo processo de entrevista, expressa em diversos momentos de silêncio e em outros de choro da paciente, mostraram que são necessárias estratégias para suavizar esse sofrimento, e que poderiam ser inseridos momentos no roteiro com os instrumentos inicialmente propostos. Por exemplo, o grande medo da morte e a certeza de ser uma doença “que não tem cura” poderiam ser reduzidos com a apresentação das imagens de Berenice, a primeira paciente em que Carlos Chagas descobriu a doença, e que viveu por décadas em fase indeterminada, vindo a falecer de outra causa não relacionada à essa infecção. Imagens desse tipo poderiam confrontar o pré-conceito da paciente de que “eu sei que vou morrer” e reforçar o conceito de que o indivíduo infectado pelo T. cruzi não necessariamente morre do coração e nem de qualquer outro sintoma de doença de Chagas. Assim, apesar da expectativa aparente de que este roteiro de entrevista se concentrasse na subjetividade do paciente frente à doença, percebemos que realmente pode fazer sentido não restringi-lo apenas à coleta de depoimentos dos participantes. Trata-se de uma modificação de postura, pois o entrevistador poderá intervir sobre questões relevantes para a compreensão da patologia pelo paciente, bem como sobre seus saberes relativos a aspectos clínicos e epidemiológicos, quando for solicitado pelo paciente. O teste realizado nos indica que o roteiro efetivamente praticado estará adequado ao uso com um maior numero de pacientes. O documento em anexo sistematiza o roteiro final que será aplicado.
O que podem nos dizer as falas dos pacientes
Na fala da paciente captada no teste de nosso roteiro de entrevista, percebemos uma lacuna na capacidade de articulação dos diversos serviços do hospital para que o atendimento possa integrar adequadamente os serviços médicos com todos os demais serviços complementares. Quando a paciente sai de uma consulta e nos diz não conhecer o serviço de psicologia, e nem a localização da Farmácia para onde deve se dirigir em seguida, fica clara a necessidade de uma melhor sinalização visual no ambiente hospitalar e de um guia informativo sobre os serviços e benefícios disponíveis e sobre os procedimentos de registro e acompanhamento do paciente na coorte de doença de Chagas.
A pesquisa em serviço de saúde, implica em problemas éticos. Não se costuma discutir a questão da “violência simbólica” envolvida na relação entre o entrevistador e o entrevistado. Mas um instrumento com perguntas controladas muitas vezes pode recair sobre o paciente como uma forma de violência. Ainda que possa ser argumentado que uma simples entrevista não tenha tal influência, por muitas vezes deixamos de admitir o fato de que precisamos nos colocar na posição de entrevistado46. O roteiro de entrevista apresentado poderá subsidiar uma melhor compreensão do perfil e subjetividade dos pacientes chagásicos num hospital de pesquisa clínica cuja característica de freqüência dos diferentes estágios evolutivos da doença49 é muito semelhante à distribuição da doença em área rural 50. Portanto, acreditamos que o processo de estabelecimento de relações humanas com os pacientes concorre para desenvolver o sentimento de responsabilidade da equipe de saúde, bem como melhorar os resultados e adesão ao tratamento, aumentando o grau de satisfação do paciente 51.
Conclusões:
a. O instrumento de pesquisa se confirmou como adequado para o estudo de saberes de pacientes chagásicos, com captação de diversos aspectos subjetivos e cognitivos.
b. O instrumento deverá ser ajustado em linguagem e ordenamento de questões para que a entrevista ocorra em forma de diálogo, propiciando uma mais confortável participação do paciente.
c. As falas dos pacientes captadas com o instrumento proposto podem ser úteis para a formulação de estratégias, ações e materiais informativos que contribuam para a melhoria e humanização da atenção ao paciente chagásico.
d. A primeira consulta a pacientes chagásicos para confirmação de diagnóstico possivelmente pode se beneficiar da seqüência de atuação do médico e de um psicólogo, para suavizar o impacto das fortes emoções mobilizadas pelo diagnóstico.
Agradecimentos
Agradecemos às psicólogas do IPEC, Márcia Franco da Silva e Tereza Cristina Amin, que contribuíram para a elaboração das idéias desse trabalho, ao Dr. Pedro Emmanuel Americano do Brasil pela realização das entrevistas com os pacientes. Este trabalho contou com o financiamento da Fundação Oswaldo Cruz/Instituto Oswaldo Cruz, do Ministério da Saúde/Departamento de Ciência e Tecnologia (Decit) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, em projetos aprovados sob a responsabilidade de Tania C. de Araújo-Jorge. Os cinco autores trabalharam na concepção do roteiro, na metodologia e na redação final do artigo. LM Ballester-Gil trabalhou na aplicação do roteiro e coleta de dados.


