0328/2025 - Trazodona para além das finalidades aprovadas: tendência de consumo nos estados brasileiros e Distrito Federal, 2014 – 2021
Trazodone Beyond Approved Indications: Consumption Trends in Brazilian States and the Federal District, 2014–2021
Autor:
• Michele Gabriela Schmidt - Schmidt, MG - <michelegschmidt@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7100-0468
Coautor(es):
• Juvenal Soares Dias da Costa - Costa, JSD - <episoares@terra.com.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3160-6075
• Maria Teresa Anselmo Olinto - Olinto, MTA - <mtolinto@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3950-4594
• Vera Maria Vieira Paniz - Paniz, VMV - <vpaniz@unisinos.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3186-9991
Resumo:
Estudo ecológico com objetivo de determinar o consumo de trazodona em baixa dose (não licenciado/off label) nas macrorregiões, estados e Distrito Federal brasileiros, acompanhar a tendência entre os anos de 2014 a 2021 e avaliar a relação com indicadores de saúde. A coleta de dados da dispensação de trazodona manipulada se deu por meio do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados, considerando-se baixa dose prescrições de 0,001 a 49,999mg. O cálculo do consumo utilizou as estimativas populacionais do IBGE. Utilizou-se análise estatística descritiva e de regressão linear generalizada, com método de Prais-Winsten. As tendências observadas foram classificadas em crescentes, estáveis ou decrescentes, com intervalo de confiança de 95% e nível de significância de 5%. Os resultados demonstraram maiores coeficientes de consumo na região: Sudeste (8,81), Nordeste (2,52), Norte (2,35), Sul (0,78) e Centro-Oeste (0,36) e relação positiva entre o número de médicos e de farmácias magistrais com o consumo de trazodona off-label. Houve consumo crescente em 4 estados, estacionário em 23 e ausência de coeficientes decrescentes. Apesar de evidências limitadas quanto ao consumo off-label de trazodona, observou-se um aumento acentuado em 2021, em todas as macrorregiões brasileiras, com maior consumo no Sudeste e relação positiva com o número de médicos e farmácias magistrais.Palavras-chave:
ANVISA, trazodona, uso off-label, farmacoepidemiologia, farmacovigilância.Abstract:
Ecological study aimed to determine the consumption of low-dose trazodone (unlicensed/off label) in the Brazilian macro-regions, states, and the Federal District, to monitor the trend between the years 2014 and 2021, and to evaluate the relationship with health indicators. Data collection on the dispensation of manipulated trazodone was carried out through the National System for the Management of Controlled Products, considering low-dose prescriptions from 0.001 to 49.999mg. The calculation of consumption used the population estimates of the IBGE. Descriptive statistical analysis and generalized linear regression were used, using the Prais-Winsten method. The observed trends were classified as increasing, stable or decreasing, with a confidence interval of 95% and a significance level of 5%. The results showed higher consumption coefficients in the region: Southeast (8.81), Northeast (2.52), North (2.35), South (0.78) and Midwest (0.36) and a positive relationship between the number of physicians and magistral pharmacies with the consumption of off-label trazodone. Was increasing consumption in 4 states, stationary consumption in 23 and absence of decreasing coefficients. Despite limited evidence regarding the off-label consumption of trazodone, a sharp increase was observed in 2021 in all Brazilian macro-regions, with higher consumption in the Southeast and a positive relationship with the number of doctors and magistral pharmacies.Keywords:
ANVISA, Trazodone, Off-label use, Pharmacoepidemiology, Pharmacovigilance.Conteúdo:
Trazodona, derivada da triazolopiridina (1966), apresenta propriedades farmacológicas e farmacodinâmicas específicas, porém não totalmente estabelecidas, que corroboram para a sua classificação antidepressiva atípica – de segunda geração1. Clinicamente, na década de 1970, a European Medicines Agency (EMA) e a Food and Drug Administration (FDA) liberaram o seu uso para o tratamento do transtorno depressivo maior (TDM) em adultos, em doses diárias iniciais de 150 mg e máximas de 400 mg2. No Brasil, o registro de uso aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, no final da década de 1980, é mais amplo e vai além do tratamento da depressão maior; se destinando, também, ao gerenciamento da depressão com ou sem episódios de ansiedade, da dor associada à neuropatia diabética e de outros tipos de dores crônicas. A dose usual sugerida inicia em 50 mg, podendo ser aumentada até 800 mg ao dia, permitindo-se doses mais elevadas em casos muito graves3. O uso em pacientes pediátricos não é aprovado por nenhuma das agências reguladoras de medicamentos2–5.
Embora aprovada para finalidades que envolvem a modulação serotoninérgica, atualmente, a trazodona tem sido amplamente utilizada em baixa dose (até 50 mg/dia), no manejo dos distúrbios do sono, condição cada vez mais frequente na população, independentemente da idade e, que pode ter se intensificado durante e no pós-pandemia6–8. A literatura relata o uso dessa abordagem terapêutica, para essa condição clínica em diferentes faixas etárias, inclusive em crianças, configurando-se como uma prática de uso off-label que compreende a utilização não licenciada de fármaco para condições, faixas de idade e em doses diversas daquelas para as quais foi desenvolvido e aprovado9–13.
O uso off-label da trazodona, está presumivelmente associado ao seu mecanismo de ação multifuncional e dose dependente hipnótico-serotoninérgico. Altas doses de trazodona modulam a recaptação de serotonina e noradrenalina mediante ao antagonismo, dessensibilização e diminuição de receptores ?-adrenérgicos, 5-HT2A e 5-HT1, postulando ação antidepressiva. Enquanto doses baixas inibem, além dos receptores 5-HT2A e 5-HT1, receptores H1 da histamina e ?1-adrenérgicos, com consequente efeito hipnótico1,14. É interessante ressaltar que o mecanismo farmacológico da trazodona em baixa dose ainda não está totalmente elucidado, podendo a prática desta prescrição representar um problema de saúde pública.
Nessa perspectiva, o uso não licenciado de antidepressivos lança luz sobre preocupações de longa data - os efeitos adversos que envolvem o possível papel destes medicamentos na indução do agravamento da depressão e de riscos inerentes ao surgimento do suicídio nas fases iniciais do tratamento, assim como a exposição aos riscos da utilização de um medicamento sem eficácia e segurança reconhecidas pelo órgão regulamentador, que perpassa pelo uso racional de medicamentos9,15,16.
Por conseguinte, com base nos registros acessíveis do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados – SNGPC, referentes à dispensação de medicamentos com a obrigatoriedade de escrituração neste sistema, este estudo tem como objetivo determinar o consumo de trazodona, em baixa dose – off label – nas macrorregiões, estados e Distrito Federal brasileiros, acompanhar a tendência entre os anos de 2014 a 2021 e avaliar a sua relação com indicadores de saúde.
MÉTODOS
Tipo e local do estudo
Foi conduzido um estudo epidemiológico, do tipo analítico e ecológico, sobre o consumo de trazodona, manipulada e dispensada em farmácias magistrais dos 26 estados e Distrito Federal brasileiros. Foram incluídos os dados referentes ao consumo de trazodona manipulada, extraídos por meio de consulta retrospectiva aos registros de dispensação armazenados no Painel Gerencial de Dados Públicos de Medicamentos Manipulados do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados – SNGPC da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA17. Nesta plataforma são exibidas informações sobre os princípios ativos, conselho prescritor, ano, mês, unidade federativa e cidade de venda, bem como a quantidade de vendas e de unidades farmacotécnicas vendidas no Brasil, desde o ano de 2014 até os dias atuais, com atualização mensal. A série temporal compreendeu os dados anuais, no período de 2014 a 2021, sendo seu início justificado pela liberação da plataforma somente em 2020, com dados disponíveis a partir do ano de 2014.
As informações referentes à dispensação de trazodona manipulada, entre os estados brasileiros e Distrito Federal, foram obtidas, primeiramente, por meio da adoção dos filtros: nome do princípio ativo: “trazodona” e “ cloridrato de trazodona”; conselho prescritor: “Conselho Regional de Medicina - CRM” e “Registro do Ministério da Saúde – RMS”; ano da venda; quantidade de unidades farmacotécnicas (cápsulas e comprimidos) vendidas e estado de venda. Como resultado, o detalhamento da venda de trazodona manipulada foi visualizado através da aba Relatório.
A variável de interesse do presente estudo foi a trazodona manipulada em doses off-label (não licenciada). A trazodona possui registro na ANVISA, com dose inicial de 50mg, dose diária definida (DDD) de 300mg e indicação de uso no tratamento da depressão com ou sem episódios de ansiedade, da dor associada à neuropatia diabética e de outros tipos de dores crônicas e no tratamento da depressão maior3. Segundo a definição de off-label, indicações e dosagens diferentes das aprovadas, configuram-se como uso não licenciado9. Assim, a partir do detalhamento de quantidade de princípio ativo por unidade farmacotécnica em gramas e por meio do cálculo de conversão para miligramas, considerou-se off-label as vendas de cápsulas e comprimidos de trazodona em doses de 0,001 a 49,999 mg, com base na literatura, essa faixa posológica tem sido utilizada no manejo dos distúrbios do sono, embora não esteja contemplada nas indicações aprovadas pela ANVISA.
A fonte de informações referente à população utilizou as estimativas anuais do Instituto Brasileiro de Pesquisa Geografia e Estatística (IBGE) para a população com 18 anos ou mais de idade (https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/estimapop/tabelas). As taxas de dispensação de trazodona manipulada em cada estado e Distrito Federal foram calculadas, a partir de construção de tabela no programa MS Excel, como a quantidade total de trazodona dispensada, expressa em unidades farmacotécnicas, por mil habitantes com 18 anos ou mais. O cálculo foi realizado utilizando a fórmula: total de dispensação (em unidades farmacotécnicas) / população residente (maior de 18 anos) X 1000. Para estimar a variação anual média do consumo de trazodona manipulada, se utilizou a fórmula da variação percentual anual entre anos consecutivos, calculada como: (Taxa do ano atual – Taxa do ano anterior) / Taxa do ano anterior X 100. Posteriormente, a média das variações anuais foi calculada para cada macrorregião18.
Os indicadores de saúde incluíram o número de farmácias magistrais – estabelecimentos autorizados a realizar a manipulação de medicamentos conforme prescrição individualizada - conforme a Associação Nacional de Farmacêuticos Magistrais19, e o número de médicos, segundo o Conselho Federal de Medicina20 .
Os dados foram exportados e posteriormente analisados no programa Stata versão 13.0. As variáveis dependentes dos modelos foram as taxas de utilização de trazodona enquanto a variável independente correspondeu ao ano de prescrição. Para análise de tendência do uso de trazodona, utilizou-se a regressão linear generalizada, com o método de Prais-Winsten, apropriada para séries temporais curtas, visando evitar erros de autocorrelação de primeira ordem18. A influência de pontos atípicos (outliers), que possam distorcer a interpretação das tendências subjacentes ao longo dos anos anteriores será considerada, à fim de testar a robustez dos modelos estatísticos diante de variações inesperadas e garantir maior confiabilidade às estimativas produzidas18,21.
Os resultados foram expressos em coeficientes de consumo de trazodona e as tendências observadas classificadas como crescentes (coeficiente positivo e p?0,05), estáveis (p>0,05) ou decrescentes (coeficiente negativo e p?0,05), adotando-se intervalo de confiança de 95% (IC95%) e nível de significância de 5%. Sendo os dados públicos, oriundos do SNGPC, não foi necessária a aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa.
RESULTADOS
Entre 2014 e 2021, 48.639.107 unidades de cápsulas e comprimidos de trazodona manipulada foram consumidas, entre os 26 estados e Distrito Federal brasileiros, segundo os dados obtidos por meio do Painel Gerencial de Dados Públicos de Medicamentos Manipulados do SNGPC, fundamentados na aplicação dos filtros estabelecidos. Destas, 37.343.784 (76,8%) unidades farmacotécnicas compuseram a amostra do estudo, mediante a aplicação do critério de inclusão da faixa de dosagem específica ? 49,999 mg - off-label.
Na análise descritiva, se observaram taxas de consumo de trazodona off-label variando de 0,31 a 206,03 por 1000 habitantes acima de 18 anos, entre os estados, segundo macrorregiões brasileiras. O agrupamento por macrorregiões permitiu comparabilidade entre as fontes de dados, revelando maiores taxas de consumo de trazodona nos estados localizados entre as regiões centro-sul do país, porém, com sobreposição nos intervalos de confiança (Tabela 1).
A análise anual do consumo da trazodona off-label expôs o aumento acentuado da evolução das taxas de utilização dessa farmacoterapia por 1000 habitantes acima de 18 anos, no ano de 2021, em todas as macrorregiões brasileiras (Figura 1).
Na análise de Prais-Winsten, segundo macrorregiões, para o período de 2014 a 2021, observaram-se maiores coeficientes de consumo na região Sudeste, seguida pelas regiões Nordeste, Norte, Sul e Centro-Oeste, respectivamente. A análise estratificada segundo os estados de cada macrorregião brasileira destacou o Distrito Federal, com o maior coeficiente de consumo de trazodona em baixa dose do país (30,12), seguido pelos estados de São Paulo (11,42), Tocantins (7,84), Paraná (7,54) e Rio de Janeiro (6,97) (Tabela 2).
Ao se retirar o ano de 2021 das análises (2014-2020), os maiores coeficientes de consumo de trazodona em baixa dose foram observados na região Sudeste, seguida pelas regiões Sul, Nordeste, Norte e Centro-Oeste, respectivamente. Ao se considerar os estados, individualmente em cada macrorregião, o estado de São Paulo apresentou o maior coeficiente de consumo (1,66), seguido pelo Maranhão (1,06), Tocantins (1,00), Santa Catarina (0,99) e Distrito Federal (0,77) (MATERIAL SUPLEMENTAR).
Em relação à série temporal, para o período de 2014 a 2021, apesar da tendência estacionária exibida pela maioria dos estados, as macrorregiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Norte apresentaram, cada uma, um estado com tendência crescente de consumo de trazodona em baixa dose, sendo eles Santa Catarina, Minas Gerais, Goiás e Amazonas. Nos estados da região Nordeste, por sua vez, a tendência de consumo permaneceu estacionária ao longo dos anos analisados. Em nenhum estado brasileiro, foi observada tendência decrescente de utilização da farmacoterapia alvo do estudo (Tabela 2).
Já quando a série temporal foi analisada excluindo-se o ano de 2021, a maioria das macrorregiões exibiu tendência crescente, excetuando-se a região Centro-Oeste, que permaneceu com a tendência de dispensação estacionária. As macrorregiões Sul e Centro-Oeste, permaneceram, cada uma, com um estado com tendência crescente de consumo, enquanto a Sudeste apresentou três estados e a Norte, quatro estados. Todos os estados da região Nordeste, permaneceram com a tendência de consumo estacionária ao longo do período. Destaca-se que Mato Grosso do Sul foi o único estado a exibir tendência decrescente de utilização da farmacoterapia avaliada. A análise de sensibilidade, realizada com a exclusão do ano de 2021, revelou uma tendência de crescimento mais uniforme no consumo de trazodona off-label entre os anos de 2014 e 2020, eliminando o impacto do aumento atípico, observado em 2021 (MATERIAL SUPLEMENTAR).
Na análise com indicadores, quando se avaliou o consumo de trazodona off-label segundo o número de farmácias magistrais, observou-se a influência negativa do número de farmácias magistrais no consumo dessa farmacoterapia para o Sudeste e positiva para as macrorregiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste, indicando relação direta do aumento do setor magistral com o consumo das doses individualizadas. O número de estabelecimentos farmacêuticos não exerceu influência sobre o consumo na macrorregião Sul. Em relação ao número de médicos, os coeficientes revelaram a influência direta da distribuição macrorregional de profissionais da classe no consumo da trazodona off-label (MATERIAL SUPLEMENTAR).
DISCUSSÃO
Ainda que a farmacoterapia da trazodona em baixas doses (? 49,999 mg) não seja oficialmente reconhecida no Brasil - off-label – os resultados deste estudo mostraram, quando se observa os coeficientes, maior consumo no Distrito Federal, seguido por São Paulo, Tocantins, Paraná e Rio de Janeiro. Quanto à tendência temporal, identificou-se 4 estados com coeficientes crescentes de consumo - Santa Catarina, Goiás, Minas Gerais e Amazonas –, 23 com consumo estacionário e a ausência de coeficientes decrescentes de consumo. Todas as macrorregiões expuseram aumento acentuado no consumo no ano de 2021.
As discrepâncias entre os estados, na dispensação de trazodona off-label identificadas podem refletir tanto a uma maior incidência de condições de saúde, como distúrbios do sono, para os quais a trazodona fora das indicações oficiais tem sido usada, quanto aos hábitos de prescrição baseados na experiência e no acesso diferenciado a opções terapêuticas, como a manipulação individualizada de trazodona em doses abaixo de 50mg20,22. As evidências relacionadas à tendência de consumo ainda são limitadas. Os estudos existentes, em sua maioria, baseiam-se na ação hipnótica, no manejo agudo e de longo prazo dos distúrbios do sono23–26. Uma coorte canadense (2002-2013) relatou uma tendência de mudança no padrão de uso de sedativos em idosos, com o aumento da dispensação dos psicofármacos trazodona e quetiapina em baixas doses, coincidindo com a diminuição da dispensação de benzodiazepínicos ao longo dos anos23. Tendências semelhantes também foram explicitadas na China25 e na Bélgica24.
Nesse sentido, o aumento acentuado no consumo de trazodona manipulada em baixa dose, observado em 2021, pode estar relacionado a fatores externos, como a intensificação dos distúrbios do sono durante e após a pandemia de COVID-19, fenômeno documentado na literatura recente8; mudanças na rotina, isolamento social e aumento da ansiedade que podem ter contribuído para essa demanda. Há ainda, indícios de substituição de benzodiazepínicos por antidepressivos sedativos, como a trazodona, devido a preocupações com os efeitos colaterais dos primeiros, especialmente nos idosos23. A preferência pela trazodona pode refletir seu perfil de segurança presumido em baixas doses e sua plausível eficácia no manejo dos distúrbios do sono26.
Já a exclusão do ano de 2021 da análise revelou que o aumento abrupto da dispensação em 2021 pode ter neutralizado a tendência crescente dos anos anteriores, expondo uma tendência mais uniforme de crescimento gradual no consumo de trazodona off-label entre 2014 e 2020. Esse achado reforça que o pico observado em 2021 possivelmente decorre de fatores externos, como os citados anteriormente8,23. A análise robustece que, sem esse evento atípico, o consumo seguia uma trajetória consistente, coerente com o padrão de aumento progressivo do uso off-label para os distúrbios do sono e ansiedade23,25,26.
Quanto ao uso farmacológico, uma metanálise evidenciou a alteração da arquitetura do sono em pacientes com insônia, aumentando o tempo total de sono e reduzindo a latência, os despertares e o tempo de vigília após o início do sono, em doses de 25 a 400 mg/dia. Em sub-grupos constituídos por doses ? 100 mg/dia (alta dose) e ? 50 mg/dia (baixa dose), as análises revelaram que a alta dose pode ser mais efetiva na diminuição da latência, no entanto, o nível de dose não exerce diferença significativa entre o sono de movimento rápido dos olhos (REM). Cabe ressaltar que a avaliação da efetividade da trazodona em relação ao sono REM fisiológico não foi conclusiva26.
Ainda, além da tendência contemporânea de substituição do uso dos sedativos prescritivamente estabelecidos por novas abordagens terapêuticas em idosos, a trazodona em baixa dose também tem emergido como alternativa no manejo dos distúrbios do sono em crianças e adolescentes, configurando uso off-label de dose e idade. Oggianu et al. (2020) estimaram doses apropriadas para a insônia pediátrica em diferentes faixas etárias por meio de modelagem farmacocinética fisiológica, fundamentando ensaios clínicos iniciais, sendo o primeiro, atualmente, em andamento12.
Quanto aos hábitos de prescrição da trazodona em baixa dose, a variabilidade entre os estados brasileiros pode refletir a assimetria entre os sistemas de saúde prescritores e dispensadores, a distribuição espacial das especialidades médicas prescritoras, a frequência e motivação da prescrição e as fontes de informações clinicas, bem como o perfil da população que a consome. Embora o custo dos medicamentos seja uma motivação frequente para substituição farmacológica terapêutica, no caso da trazodona, não se verificam diferenças expressivas em comparação a outras opções disponíveis27.
Nesse sentido, a demografia médica poderia ajudar a explicar as diferenças regionais no consumo da trazodona off-label. A escassez de políticas públicas que promovam a fixação de profissionais em áreas afastadas acentua a desigualdade na distribuição médica entre regiões, capitais e municípios interioranos. A última pesquisa demográfica revelou forte disparidade nas regiões norte e nordeste20. Considerando que a trazodona requer dispensação com retenção de receita, o acesso ao médico torna-se um fator determinante de consumo, como evidenciado neste estudo pelos coeficientes positivos e estatisticamente significativos.
Considerando ainda que a baixa dose de trazodona trata-se de uma preparação majoritariamente magistral, a distribuição dos estabelecimentos magistrais nas regiões brasileiras torna-se relevante. Até o final de 2021, havia 8.391 estabelecimentos com manipulação, sendo 81,7% no centro-sul, em contraste a 18,3% no norte e nordeste. Embora contempladas por um menor número de farmácias magistrais, as regiões norte e nordeste apresentaram os maiores crescimentos desde 2016: 38,7% e 70,4% respectivamente22. Ainda que nem todas possuam autorização para aviar a trazodona, observou-se relação direta entre o número de farmácia magistrais e o consumo de trazodona em baixa dose, trazendo à luz a inquietação de que um aumento do número de farmácias, possa evidenciar uma maior demanda da população pelo serviço.
Há anos o Brasil tem se empenhado na formulação de diretrizes que assegurarem o acesso à Assistência Farmacêutica, ao Cuidado Farmacêutico e à promoção do Uso Racional de Medicamentos. O uso off-label da trazodona em baixa dose pode evidenciar um novo padrão de prescrição, porém a segurança clínica é desconhecida. Assim, é importante notabilizar que o desenvolvimento de medicamentos envolve um processo rigoroso e regulamentado, assegurando segurança e eficácia ao propósito para o qual são aprovados, sendo possível ampliar a indicações apenas mediante novos ensaios clínicos, circunstância rara, devido ao alto custo agregado, envolvendo um medicamento já comercializado28.
A prescrição e uso fora das indicações oficiais não garantem o mesmo nível de eficácia e segurança. Além disso, a escassez de estudos clínicos e dados de acompanhamento para o uso não licenciado de medicamentos por longos períodos12 levanta preocupações quanto à possibilidade de ocorrência de eventos adversos evitáveis29 e à falta de evidências sobre os benefícios terapêuticos em comparação com o uso aprovado30. Por conseguinte, a emergente substituição de sedativos por trazodona em baixa dose, gera preocupações, dado o seu impacto no sistema nervoso central. Isso enfatiza a importância da prudência em sua prescrição e reforça a necessidade de diretrizes baseadas em evidências, à semelhança de agências internacionais31, norteando o uso clínico seguro e a promoção do uso racional de medicamentos16,23,32. Adicionalmente, a garantia da qualidade da preparação e a adoção de boas práticas de manipulação são fundamentais, pois interferem diretamente na eficácia e segurança da farmacoterapia33.
Em contrapartida, os sedativos benzodiazepínicos - amplamente consumidos para os distúrbios do sono no Brasil - apesar da relativa segurança, apresentam contraindicações importantes em idosos, incluindo risco de sonolência diurna, confusão, amnésia, comprometimento motor e o aumento do risco de quedas34. Já para a trazodona, em dose licenciada, os riscos significativos relatados envolvem a sonolência diurna e perda de apetite13,26. Considerando o uso clinico de baixas doses para o manejo do sono, há que se pensar que a incidência de efeitos colaterais também seja menor5. Todavia, apesar de evidências de potenciais benefícios da farmacoterapia com trazodona em baixa dose superarem os riscos5,10,14,26,35 a carência de evidências científicas sustenta a necessidade de estudos farmacoepidemiológicos de acompanhamento do uso e de seus efeitos no manejo do sono.
Ainda que o SNGPC não distinga a indicação de uso dos medicamentos e o desenho ecológico do estudo não permita a ilação de associações, o consumo da trazodona off-label ecoa preocupações sobre o uso racional de medicamentos, especialmente pela ausência de dados sobre efeitos a longo prazo. Ainda, este estudo se destaca pela amplitude nacional, apoiada em um sistema público, com um banco de dados centralizado, abrangente e pouco explorado, que engloba todas as regiões do Brasil e permite abordar um tema de extrema relevância e preocupação, especialmente no que diz respeito ao uso off-label de medicamentos que afetam o sistema nervoso central. Adicionalmente, dado o impedimento de empregar o cálculo da dose diária definida (DDD), medida amplamente reconhecida em estudos de uso de medicamentos - qualquer cálculo resultaria em dosagem diferente de 49,999 mg -, ressalta-se como ponto forte a construção manual de estratégias eficazes na coleta dos dados off-label visando garantir a solidez das informações e subsidiando futuras pesquisas com dados do SNGPC.
Quanto às limitações deste estudo, destaca-se que os dados do SNGPC refletem a dispensação, servindo como um indicador do consumo, mas não garantem o consumo efetivo do medicamento, nem que o consumo tenha se dado em uma única dose diária. Além disso, o sistema apresenta limitações importantes: (a) O registro facultativo de dados clínicos limita a busca de hipóteses etiológicas, além disso, existe o risco de inconsistências, omissões e erros no preenchimento e alimentação do sistema pelas farmácias; (b) A disposição intrincada dos dados pode obstaculizar a compreensão farmacoepidemiológica; e (c) A suspensão temporária dos prazos de transmissão dos dados de dispensação de medicamentos sujeitos ao controle especial, impetrada pela RDC 586 de 202136, impossibilitou a análise de dados posteriores a 2021; Por consequência, para fomentar pesquisas farmacoepidemiológicas futuras, sugere-se o aprimoramento na especificação dos dados de prescrição, dispensação e consumo dos medicamentos incluídos nos sistemas de informação em saúde.
Em suma, notabiliza-se que este estudo é pioneiro ao utilizar os dados de dispensação de trazodona em baixas doses provenientes de farmácias de manipulação no país. Os resultados denotam a importância de com dados primários que visem o conhecimento da motivação da prescrição por parte dos profissionais e da organização dos sistemas de saúde que influenciam no consumo dos medicamentos, além do desenvolvimento de comissões, diretrizes e estratégias que qualifiquem o uso off-label de medicamentos, diminuindo a lacuna entre a aprovação das agências regulamentadoras e as práticas contemporâneas de prescrição de medicamentos, contribuindo assim, para o seu uso de forma racional.
AGRADECIMENTOS E FINANCIAMENTO
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
CONFLITOS DE INTERESSE
Os autores declaram não haver conflitos de interesse a informar.
CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES
Schmidt MG e Paniz VMV participaram da elaboração da proposta, concepção do estudo, análise dos dados, elaboração das versões preliminares do manuscrito, revisaram criticamente o texto, aprovaram a versão final e se apresentam como responsáveis por todos os aspectos do trabalho, garantindo sua precisão e integridade.
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