0448/2008 - Práticas alimentares na gravidez: um estudo com gestantes e puérperas de um complexo de favelas do Rio de Janeiro, Brasil
Eating practices during pregnancy: a study of low-income pregnant and postpartum women in Rio de Janeiro, Brazil
Autor:
• Mirian Ribeiro Baião - Baião MR - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro - Universidade Federal do Rio de Janeiro - <mirianbaiao@uol.com.br>Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
O estudo teve como objetivo analisar as práticas alimentares, durante a gestação, relatadas por mulheres grávidas e puérperas, moradoras em um complexo de favelas do município do Rio de Janeiro. Optou-se por uma pesquisa de base interpretativa, na qual se utilizou entrevista semi-estruturada e análise de conteúdo em sua vertente temática. Foram incluídas 18 gestantes e 8 puérperas (n=26), sendo 7 adolescentes e 19 adultas; primíparas e multíparas. Para as mulheres, comer e assistir à televisão, comer fora de casa e comer com parentes e amigos no final de semana eram formas de associar lazer à comida, aumentando o prazer pela mesma. A renda foi apontada como a principal barreira para o consumo de alimentos saudáveis que eram prioridade das crianças. Por estes motivos, leite, verduras, legumes e frutas eram pouco consumidos. A dieta era composta basicamente por arroz, feijão e frango. Houve preferência por “besteiras”. As mulheres estavam submetidas a uma alimentação monótona. Ressalta-se a importância da compreensão e valorização das questões socioculturais e econômicas que influenciam nas práticas alimentares, a fim de que a orientação alimentar e nutricional, visando à alimentação saudável, possa ser negociada e ajustada às necessidades e à subjetividade das mulheres grávidas.Palavras-chave: gravidez; alimentação; cultura; pesquisa qualitativa
Abstract:
This study aimed to analyze the self-reported eating practices of pregnant and postpartum women living in a group of slum communities in the city of Rio de Janeiro, Brazil. The interpretative methodology used a semi-structured interview and thematic content analysis. The sample (n = 26) consisted of 18 pregnant and 8 postpartum women, of whom 7 were adolescents and 19 adults, including both primiparous and multiparous subjects. According to these women, eating while watching television, eating out, and eating with relatives and friends on weekends were forms of associating leisure-time activities with food, thus increasing their pleasure in eating. Income was identified as the principal obstacle to consuming healthier foods, which were reserved for their children as a priority. Thus, milk, vegetables, greens, and fruit were rarely consumed. Their diet consisted mainly of rice, beans and chicken. There was a clear preference for “junk food”. The women were limited to a monotonous diet. It is important to understand and value the socio-cultural and economic issues that influence eating practices in order for food and nutritional orientation aimed at healthy eating to be negotiated and adjusted to pregnant women’s objective and subjective needs.Key words: pregnancy; eating; culture; qualitative research
Conteúdo:
O ser humano, além de escolher aquilo que come considera também outros aspectos inerentes ao ato alimentar como as distintas formas de preparo e preservação de alimentos, as quantidades, os horários, os momentos especiais, os locais e a comensalidade. Esse conjunto de itens compõe diferentes práticas alimentares que se relacionam às experiências socioculturais e às representações coletivas1.
Em cada grupo etário ou curso de vida o consumo de alimentos e os modos de se alimentar podem ser influenciados por questões fisiológicas e emocionais, pela cultura, pela situação socioeconômica e nem sempre vão estar de acordo com o conhecimento científico em Nutrição.
Durante a gravidez, a questão da alimentação é muito importante, sendo previstas alterações na dieta, como parte do protocolo da assistência pré-natal, principalmente em função das necessidades aumentadas2. No entanto, a cultura alimentar também se faz presente, freqüentemente, a partir de crenças, prescrições e interdições. Por exemplo, para muitos grupos sociais, alguns alimentos costumam ser retirados da dieta de uma mulher grávida, quando são considerados “fortes” ou “quentes”3,4,5. Existem também convicções relacionadas à característica e à cor dos alimentos. Os de coloração berrante podem causar sinais na pele da criança e um bebê com pouco ou nenhum cabelo sugere a ingestão de ovos pela gestante3, dentre inúmeras outras crenças. Assim, nesse período, a mulher fica submetida a regras alimentares que visam à proteção do binômio mãe-filho e as transgressões a tais regras podem ser vistas como causas de problemas de saúde3,5.
Mesmo que durante a gravidez as mulheres estejam cercadas por uma racionalidade técnica, sobretudo por meio do contato com o discurso científico no pré-natal, as crenças, os valores, os gostos, as prescrições e interdições continuam a agir como fortes referenciais6. O conhecimento em Nutrição e a cultura alimentar podem se justapor, contrapor ou conjugar, às vezes interferindo na margem de autonomia da gestante sobre suas escolhas alimentares6.
A compreensão dos nexos de sentidos e significados atribuídos pelas mulheres aos alimentos e aos modos de comer, durante a gestação, faz-se necessária, a fim de que o diálogo ocorra entre os diferentes saberes, contribuindo para a promoção de práticas alimentares saudáveis condizentes com o cotidiano das gestantes, com suas demandas objetivas e com sua subjetividade, em busca de um melhor resultado obstétrico. Nesse sentido, este estudo buscou analisar as práticas alimentares na gestação sob a perspectiva de mulheres grávidas e puérperas que vivem em um complexo de favelas no município do Rio de Janeiro.
Metodologia
O estudo adotou a teoria interpretativa7, e o foco da investigação priorizou o entendimento dos sistemas de significados sobre as práticas alimentares.
Participaram da investigação 18 gestantes e 8 puérperas, primíparas e multíparas. Destas, sete eram adolescentes (seis gestantes e uma puérpera). A inclusão deste segmento e de mulheres com e sem filhos visava alcançar maior abrangência dos sentidos e significados atribuídos às práticas alimentares. Sempre que as diferenças se manifestaram em função da idade ou da presença de filhos, essas foram valorizadas. O número final de entrevistas se obteve pelo critério de reincidência e saturação de sentidos8.
Todas as mulheres foram captadas nas salas de espera de uma unidade básica de saúde local. Nesses espaços, eram explicados os objetivos da pesquisa, os procedimentos metodológicos e a forma de participação das mulheres. Aquelas que concordaram assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O estudo foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fiocruz. Com vistas a garantir o caráter sigiloso das informações, os depoimentos foram codificados pela letra G, para gestantes, e P para as puérperas, acrescidos do número arábico.
Aplicou-se entrevista semi-estruturada que durava, em média, cerca de 2 horas e todas foram realizadas e transcritas pela autora principal da pesquisa.
As principais questões de interesse para a investigação abordavam as preferências alimentares, as aversões ou restrições e os fatores que as motivavam; a dieta habitual; a dieta na gestação e a narrativa sobre o momento das refeições.
As práticas alimentares designaram, portanto, um conjunto de eventos que incluíram as escolhas realizadas, isto é, aqueles alimentos que eram consumidos e os recusados; os motivos pelos quais as mulheres comiam ou rejeitavam certos alimentos e preparações; os locais onde se comia; os horários; o cenário que envolvia o ato de comer, quer fosse pela presença de outras pessoas quer pelas regras da comensalidade, juntamente com os sentidos e significados que acompanham a alimentação9.
Todo o material empírico foi submetido a uma adaptação da análise de conteúdo em sua modalidade temática10,11. Inicialmente, realizou-se a leitura “flutuante”, a organização dos corpos de análise e a formulação de questionamentos iniciais. Posteriormente, procedeu-se a codificação, quando foram detectados os temas, categorizados os conteúdos e identificados os “núcleos de sentido”. A análise focou o reconhecimento e a compreensão das categorias êmicas e o diálogo destas com as categorias éticas. Na apresentação dos resultados, todas as categorias êmicas foram destacadas em aspas e itálico.
A interpretação correspondeu a um movimento de sínteses, construções, desconstruções e recombinações dos sentidos relacionados às práticas alimentares7,12 .
Resultados e discussão
O cenário e os sujeitos do estudo
A região onde vivem as mulheres é caracterizada por um complexo de favelas com condições sociais e ambientais muito desfavoráveis13. Do total de domicílios, 30% estão em áreas consideradas de risco de desabamentos. Há ausência de instituições públicas, especialmente escolas para o ensino fundamental do segundo segmento e ensino médio. Desemprego, emprego informal e violência marcam a vida dos moradores13.
As mulheres que participaram do estudo tinham de 15 a 46 anos e a maioria (14) não completou o ensino fundamental. Somente sete tinham alguma atividade remunerada (dentre estas, uma conciliava trabalho e estudo), quinze se dedicavam ao lar, três adolescentes revelaram não ter nenhuma atividade, e uma era estudante. A maior parte (18) declarou que vivia com o marido ou companheiro, quatorze delas permaneciam unidas ao primeiro cônjuge, dez eram primíparas (cinco adolescentes e cinco adultas), e um total de dezesseis já tinha filhos (duas adolescentes e quatorze adultas). Do conjunto, seis eram nordestinas e viviam no Rio de Janeiro, na época da entrevista.
As práticas alimentares na gestação
As adolescentes grávidas que não estavam estudando ou trabalhando não tinham horário para comer, principalmente porque dormiam e acordavam muito tarde. As demais mulheres procuravam seguir horários considerados “normais” para o café da manhã, almoço e jantar, sendo este habitualmente substituído por lanches.
Comer e assistir à televisão eram duas coisas quase inseparáveis, difícil de “abrir mão” de uma em função da outra. Além das poucas oportunidades de lazer, a televisão tornava mais prazeroso o ato de comer, principalmente porque a “comida” era pouco atrativa.
A principal forma de diversão era sair para “comer fora”. Nessas ocasiões e locais, buscavam as “coisas de rua” (churrasquinho, cachorro-quente, salsichão, batata frita etc.), os fast foods (principalmente as adolescentes) e, com menor freqüência, os rodízios de pizzas. Entretanto, na gravidez, procuravam sair menos para evitar gastos e excessos alimentares.
Para as mulheres, o “comer em casa” e o “comer fora” tinham motivações e significações distintas. No geral, o primeiro era interpretado como o espaço privado, parte da rotina diária, associado ao trabalho, às obrigações e à monotonia alimentar. O segundo representava o espaço público destinado ao prazer, conforme também verificado por Casotti (2002)14. Somente uma entrevistada revelou que preferia “comer em casa” porque, para ela, a “comida de rua” não era segura quanto à higiene.
Final de semana era dia de “comida diferente”. Compartilhar a refeição com familiares e amigos constituía uma alternativa de lazer, como observado por outros autores9,14,15 . Nesses encontros, as famílias procuravam fazer “comidas” mais elaboradas e com maior valor social. As preparações mais escolhidas eram: lasanha, churrasco, rabada, salpicão, empadão e algum tipo de doce como sobremesa.
Em consonância com a pesquisa de Zaluar (2000)15, desenvolvida com famílias moradoras da Cidade de Deus, as mulheres que participaram do presente estudo revelaram que os primeiros quinze dias do mês eram os mais favoráveis a uma “comida saudável” porque, depois disso, via de regra, o dinheiro já havia acabado. Até o próximo pagamento, podiam experimentar situação de escassez alimentar. Portanto, a qualidade e variedade da “comida” dependiam, especificamente, da questão financeira. Contudo, certos alimentos eram considerados tão essenciais à sobrevivência, que raramente podiam faltar, compondo uma dieta básica, como é o caso do arroz e feijão e algum tipo de carne.
Para as gestantes e puérperas, havia necessidade de desenvolver estratégias para garantir a presença diária dos alimentos considerados essenciais. Pedir dinheiro emprestado, comprar “fiado”, contar com doação de alimentos e comer em casa de parentes eram algumas alternativas encontradas. O enfrentamento das condições precárias de vida ocorria por meio do apelo aos diversos tipos de solidariedade presentes na família, na vizinhança e na comunidade, como também evidenciado por Gerhardt (2003)16. Uma solidariedade que, talvez, seja menos exercida em outras classes de nossa sociedade, tanto pela forma, quanto pela freqüência com que ocorrem15.
No campo da idealização das práticas alimentares, emergiram das falas das entrevistadas as categorias “comida saudável, comida leve e comida natural”, representadas por sopas e caldos, arroz e feijão, “miojo sem pozinho”, pão, galinha, frutas, verduras e legumes, reconhecidos como “comida de verdade, que não enche e que é mais nutritiva”, devendo ser preferencialmente consumida por mulheres grávidas.
Embora a “comida saudável, leve ou natural” fosse quase inexistente nas práticas alimentares, foi considerada a mais indicada, o que sugere uma influência do discurso científico. Assim, nem tudo aquilo recomendado como “saudável”, era de fato consumido pela maioria mulheres.
As primíparas e as que não viviam com os filhos relataram consumir alimentos e preparações “saudáveis”, ao contrário daquelas que moravam com as crianças.
O bebê “dentro da barriga” não pertencia ainda ao mundo real17 e estava protegido. Já as crianças “fora da barriga” sentiam as sensações e conseqüências da fome. Elas não deveriam passar pela privação alimentar porque não haviam “pedido para nascer”. Especialmente, a mulher, mesmo estando grávida, deveria fazer de tudo para evitar que os filhos sofressem com a falta de “comida”, inclusive deixar de comer. Ainda, as crianças, por serem consideradas mais vulneráveis, não somente eram as que precisavam de “alimentos saudáveis”, mas também as que tinham prioridade na distribuição intra-familiar.
“A criança que tá aqui fora (...) sofre mais [pausa]. O neném tá guardado. Quem tá aqui fora sofre mais, porque não tem o que comer. Pô! Eles até choram! [emocionada].” (G8).
A “comida” era representada pela refeição que diariamente se fazia no almoço e no jantar. Como era pouco variada e monótona, costumava ser causa de enjôo. Com isso, as mulheres acabavam desenvolvendo preferência por alimentos e preparações por elas qualificados como “besteiras”, embora reconhecessem que podiam ser prejudiciais à saúde, principalmente porque contribuíam para a obesidade.
“Besteira” ou “porcaria” era “tudo que engorda e que não é saudável”. Faziam parte dessas categorias: doces variados, alimentos industrializados, sanduíches, salgadinhos, pastéis, pizzas, biscoitos, os diversos espetinhos vendidos na comunidade, batata frita, alimentos gordurosos etc.
Rito (2004)18 também identificou preferência por “besteiras”, a partir dos depoimentos de gestantes obesas. No estudo de Collaço (2003)19, os indivíduos entrevistados entendiam que, para realizar uma refeição, era necessário ter “comida”, representada pelo que se comia em casa, considerada a dieta saudável. Já os lanches eram geralmente classificados como “porcaria ou tranqueiras”. Note-se que esses termos enfatizam o mesmo sentido de algo sem valor ou mérito nutricional.
Mesmo sendo pouco variada, para as gestantes e puérperas deste estudo, a “comida” tinha uma obrigatoriedade porque, a par disso, carregava o rótulo de “saudável”.
Com vistas a compreender os sentidos que denotavam a preferência das mulheres pelas “besteiras”, pode-se dizer que estas incluíam alimentos e preparações que se caracterizavam pela maior praticidade e possibilidade de variar, pelo menor custo, segundo as entrevistadas, tornando-as mais atrativas que “comida” e, principalmente, porque eram tidas como “coisas gostosas”, que estimulavam a vontade e o desejo, mesmo sendo “porcaria”.
As “besteiras” estavam disponíveis em toda a comunidade, sendo possível comprar salgadinhos, pizzas, pastéis, cachorro-quente, espetinhos, enfim “coisas de rua”, quase sempre, pelo preço apenas de um real.
As “coisas de rua” ofertavam uma enormidade de opções sedutoras, algumas delas semelhantes ao que usualmente é vendido no interior dos restaurantes e lanchonetes, ambientes possivelmente menos freqüentados por este grupo, devido às barreiras da renda20. Muitas vezes esses produtos eram comprados e trazidos para casa como uma forma de ressignificar o “comer em casa”.
A “comida” exigia o gás de botijão, um preparo mais trabalhoso e, conseqüentemente, mais tempo e disponibilidade da mulher21. Implicava, ainda, num gasto maior para que se tornasse variada e atrativa.
Toda a argumentação em torno da “comida” e das “besteiras” corrobora o questionamento de autores quanto à existência de uma relação de determinação das representações sobre as práticas22,23 e suscita a reflexão sobre a interação dialética entre o pensar e o agir relacionados ao ato de comer.
Na visão de Zaluar (2000:110)15 a preferência por alimentos de pouco valor nutricional, mas que dão a “sensação de barriga cheia” com o “arranjo de uma dieta esteriotipada e monótona”, pode ser considerada uma das expressões da pobreza urbana.
Dentre todas as entrevistadas, somente uma atribuía um sentido de satisfação à “comida” ou refeição básica. Os alimentos e (ou) preparações foram referidos pela mesma no diminutivo. Neste caso, a forma diminutiva significava uma relação de afetividade, que se dava por meio do preparo, com cuidado e carinho, de uma “comida” gostosa e caseira.
“Hoje, no caso, eu fiz uma carninha assada, um arrozinho e, o feijão, fiz ontem, mas tá fresquinho, porque de ontem pra hoje, né? (...) Às vezes, eu faço um arrozinho com feijão, com carne moída. Às vezes, eu faço um macarrãozinho, uma galinha com batatinha.” (G16).
Essa relação com a “comida” devia-se, principalmente, ao fato de essa gestante estar vivendo, na época, um momento bom em sua vida, conseqüência do trabalho, com carteira assinada, o que dava estabilidade econômica e possibilitava o acesso aos alimentos, além de ter um novo namorado.
É importante destacar que as gestantes não tinham noção das quantidades que comiam, devido à oscilação da ingestão de alimentos durante a gravidez. Isto era ocasionado por diversos fatores, como alteração do apetite, enjôo e vômitos, nervoso, conflitos e crises com familiares e (ou) companheiro, medo do futuro, situação financeira precária etc.
Era comum acontecer que uma gestante passasse um dia inteiro sem comer ou comesse exageradamente em decorrência de seu estado emocional. No caso das mulheres que participaram deste estudo, a primeira situação foi mais freqüente. A ingestão de alimentos podia variar durante um mesmo dia ou alguns dias. Essa é uma questão para ser refletida por pesquisadores que buscam informações quantitativas sobre consumo alimentar na gestação.
Os alimentos mais consumidos e restrições alimentares na gravidez
Quando questionadas sobre os alimentos mais consumidos na gestação, as entrevistadas sempre apontavam, em primeiro lugar, aqueles que, na sua visão, eram considerados “saudáveis”, mas não necessariamente eram os que comiam. Aos poucos, a dieta básica foi sendo revelada.
De modo geral, as mulheres, mesmo grávidas, alteravam pouco a prática alimentar, especialmente no que se referia aos alimentos habitualmente consumidos.
Afirmaram que, no café da manhã, costumavam tomar café puro ou com leite (a maioria) ou “vitamina” (P7, G2) ou chá preto (G16) ou guaraná (P2, G12), quase sempre com pão com manteiga (margarina) ou pão com queijo e presunto (G13) ou pão com mortadela (G11, G12, G16, G17) ou biscoitos (G2, G4).
O leite de vaca puro era considerado um alimento “saudável” e, por isso, indispensável ao desenvolvimento das crianças, sendo pouco consumido pelas mulheres, devido às restrições econômicas. Somente aquelas que não estavam vivendo com os filhos ou outras crianças no domicílio e as primíparas bebiam leite, mesmo não gostando.
No almoço e no jantar, era habitual comer arroz com feijão. O feijão era o preto, para as cariocas, e o “feijão de cor” para as nordestinas. Podia-se combinar feijão com arroz ou farinha ou macarrão ou “miojo, sem o pozinho”, mas era melhor evitar juntar qualquer um dos quatro últimos alimentos porque, de acordo com as mulheres, essa combinação “engorda”.
Segundo algumas participantes do estudo, comer só arroz e feijão diariamente era uma “mistura fraca”. No estudo de Canesqui (2005)9, ter apenas arroz e feijão no prato também simbolizava uma dieta empobrecida e monótona.
Como visto em Zaluar (2000)15, a “carne vermelha” representava o alimento mais valorizado, entretanto pouco consumido. Além de cara, este tipo de carne foi considerada pelas entrevistadas como “não saudável”, ainda que fosse preferida. Nesse sentido, foi evidenciada uma tendência ao consumo de “carne branca”. Havia uma ordem na escolha de alimentos que podiam substituir a “carne vermelha”: o frango era o primeiro da lista, seguido de ovos, embutidos, ficando o peixe em último lugar.
O hambúrguer podia substituir a carne na refeição, pois era mais barato e, assim, tornava-se “comida”. No entanto, se consumido em forma de sanduíche, era classificado como “besteira”.
O fígado foi apontado como um “alimento bom” para a grávida, mas somente duas mulheres (P1, G3) relataram que o consumiam e, mesmo assim, raramente, porque não gostavam.
As verduras e legumes eram pouco consumidos porque não estavam na lista dos alimentos considerados essenciais ou por não gostarem. Porém, quando solicitadas a dar conselhos sobre alimentação, as verduras e legumes eram sempre indicados como importantes na dieta. Dentro desse grupo de alimentos, a beterraba, embora não apreciada, apareceu como um dos mais importantes, sendo consumida por algumas mulheres porque associavam a beterraba à prevenção e tratamento da anemia.
As frutas eram mais consumidas (sob forma de “vitaminas”, “sucos” ou in natura) do que verduras e legumes e, quando disponíveis, eram escolhidas para os lanches. Ocorreu preferência por frutas ácidas. Como também não eram consideradas básicas na dieta, podiam faltar se a situação econômica agravasse.
De forma semelhante, as famílias que fizeram parte do estudo de Canesqui (2005)9 consideravam legumes, verduras e frutas menos necessários, pois esses itens representavam um custo adicional na alimentação. Já as mulheres entrevistadas por Ferreira & Magalhães (2005)24, expressaram desejo de consumir esses alimentos, embora tenham assumido que o preço dos mesmos era um impedimento ao seu consumo.
Para as mulheres, os refrigerantes podiam ser ingeridos, com moderação, nos lanches ou nas refeições, quando não podiam comprar o leite ou as frutas para fazer “sucos”. De acordo com as entrevistadas, os profissionais de saúde orientavam que os refrigerantes não deveriam ser consumidos durante a gravidez porque, além de serem reconhecidos como “fortes”, também causavam estrias. Contudo, tomar refrigerante se tornava mais barato, principalmente as marcas menos conhecidas e escolhiam o guaraná, identificado como mais “fraco”. O “guaraná natural” foi citado como a bebida do cotidiano por ser mais “saudável” que todas. Possivelmente esse aspecto seja conseqüência da força do marketing da indústria desse produto que dissemina essa característica e de seu maior rendimento, quando obtido em forma de xarope.
Na gravidez, as mulheres passaram a comer alguns alimentos que, antes de engravidar, não eram consumidos por serem menos apreciados. Em ordem, os alimentos mais citados como aqueles incluídos na dieta durante a gestação foram: leite (o mais enfatizado), feijão e beterraba (por causa da anemia), jiló e quiabo (por serem legumes). Esses alimentos foram incluídos pelas mulheres voluntariamente ou pelo fato de se sentirem pressionadas pela mãe e (ou) pelo companheiro ou por terem sido “obrigadas” por nutricionista (G14).
A categoria apreendida para exemplificar a mais importante restrição alimentar foi “comida pesada” (“que dói, pesa na barriga”), sendo representada principalmente por carnes de porco, feijoada, estrogonofe, comida com muito tempero, frituras, mocotó e rabada. Nunca se podia comer “comida pesada” à noite, pois podia interferir na digestão ou no sono. Neste caso, o feijão simples também estava incluído. Esses depoimentos revelam uma lógica que busca adequação do consumo aos estados do corpo, ocasiões e horários25.
O café puro foi apontado como um alimento não indicado na gravidez, sendo permitido somente com leite, porque “café puro causa nervoso no bebê” (G1). Porém, esta bebida era consumida por mulheres que revelaram viver situações de “crise” (G3) e “agonia” (G6), podendo estar associado ao uso de cigarro. Também se podia tomar café puro quando o leite era prioridade das crianças ou, em menor quantidade, quando não se gostava do leite, de jeito nenhum, ou por não se ter condições de comprar esse alimento.
A gordura e o sal apareceram como itens que deveriam ser controlados, principalmente se a mulher sofresse de pressão alta e em dias muito quentes porque a gestante pode “se sentir mal”.
O limão foi citado por ser muito “ácido” e “forte”, não podendo ser consumido por uma grávida, mas não souberam dizer o que o consumo de limão poderia causar.
A dicotomia “natural” x “artificial” se manifestou nos relatos. Alimentos industrializados, comida congelada e “pozinho do miojo” não eram recomendados porque são “artificiais” e, de acordo com as entrevistadas, podem conter elementos nocivos à saúde.
Os doces e “tudo que engorda”, especialmente para as que estavam com excesso de peso, eram alimentos vistos como proibidos na gestação.
O consumo de canela na gravidez foi apontado como perigoso, devido à crença de que tem efeito abortivo.
Surgiu, ainda, a restrição a “alimentos que prendem o intestino” (banana, maçã etc) porque essa situação incomoda muito e traz desconforto para a mulher grávida.
Duas mulheres fizeram questão de afirmar que restrição, na gestação, só tem que ser de cigarro (G2), álcool (G1, G2) e droga (G2). Para elas, fazer qualquer restrição alimentar, na gravidez, só mesmo “se o médico mandar”, sugerindo a força do discurso biomédico e que, nesse período, é possível comer de tudo.
Muitas prescrições e restrições alimentares construídas culturalmente são baseadas em um sistema de classificações binárias26. Neste estudo, a classificação binária de “comida/alimento forte ou fraca(o)” tinha duplo sentido. No primeiro, “comida/alimento forte” significava de boa qualidade, “que sustenta”, em oposição a(o) “fraca(o)”, destituída(o) de “vitaminas”, semelhante ao encontrado em Woortman (1978)26 e Canesqui (1979, 2005)27, 25. No segundo sentido, o “forte” podia ser interpretado como prejudicial, “pesado”, capaz de fazer mal ao organismo, em oposição ao “leve”, que não traz prejuízos à saúde, não faz nem bem nem mal, como também apontado por Canesqui (1979)27, podendo até ser consumido por pessoas doentes, em convalescença e mulheres no ciclo gravídico-puerperal, segundo Woortman (1978)26.
Conclusões
As mulheres estavam submetidas a uma dieta monótona com presença constante de produtos não saudáveis, sob o ponto de vista do conhecimento científico em Nutrição.
As práticas alimentares eram influencias pelo conhecimento nutricional, difundido pelos profissionais de saúde, mas este era reinterpretado com base na cultura, nas representações sociais, nas observações, experiências e condições de vida das mulheres.
É essencial evitar que a subjetividade e a cultura alimentar sejam interpretadas pelos agentes do conhecimento biomédico como saber desqualificado e (ou) falta de informação sobre alimentação. Dessa forma, a abordagem e o entendimento sobre as práticas alimentares necessitam do trabalho multiprofissional e da aproximação com as Ciências Sociais e Humanas.
Ressalta-se a importância estratégica da ação dos profissionais de saúde, no pré-natal, estar voltada para aumentar a autonomia e o auto-cuidado das mulheres, a partir de relações cujo vínculo e a confiança sejam considerados princípios norteadores da assistência. A escuta compreensiva de suas narrativas, a negociação, em substituição à imposição, de um plano de atendimento que seja socioculturalmente sensível são fundamentais no processo.
Colaboradores
MR Baião foi responsável pela pesquisa, elaboração e redação do artigo.
SF Deslandes orientou a pesquisa, participou da revisão crítica e colaborou na redação final.
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