0396/2025 - ASSOCIAÇÃO ENTRE SEGREGAÇÃO SOCIOECONÔMICA E QUALIDADE DA DIETA EM PRÉ-ESCOLARES
ASSOCIATION BETWEEN SOCIOECONOMIC SEGREGATION AND DIET QUALITY IN PRESCHOOL CHILDREN
Autor:
• Isabel Nascimento dos Santos - Santos, IN - <isabel.nutri@yahoo.com.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7285-920X
Coautor(es):
• Letícia Barroso Vertulli Carneiro - Carneiro, LBV - <leticiavertulli@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0832-2293
• Inês Rugani Ribeiro de Castro - Castro, IRR - <inesrrc@uol.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7479-4400
• Aline Araújo Nobre - Nobre, AA - <anobre.ba@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6306-9257
• Letícia Oliveira Cardoso - Cardoso, LO - <leticiadeoliveiracardoso@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1312-1808
Resumo:
Objetivo: Examinar a associação entre segregação socioeconômica e qualidade da dieta em crianças de 6 a 59 meses. Métodos: Estudo transversal com amostragem complexa realizado em unidades básicas de saúde do Rio de Janeiro, em 2014. A exposição foi a segregação socioeconômica estimada pela estatística Getis-Ord Local Gi*. Os desfechos foram diversidade alimentar mínima e percentual de alimentos ultraprocessados (%AUP) na dieta. Aplicou-se regressão logística para diversidade alimentar e regressão quantílica para %AUP, com análise em R. Resultados: Houve associação significativa entre alta e média segregação e os quantis 60, 70 e 80 (alta) e 60 e 70 (média) de %AUP. As maiores associações foram no quantil 80 para alta segregação (10,1; IC95%: 1,5–16,4) e no quantil 70 para média (7,4; IC95%: 0,7–15,0). Conclusão: Apesar da alta prevalência de diversidade alimentar mínima, a dieta das crianças apresenta elevada proporção de ultraprocessados, associada à segregação socioeconômica residencial.Palavras-chave:
Segregação Social. Inquéritos. Alimentos Ultraprocessados.Abstract:
Objective: To examine the association between socioeconomic segregation and diet quality in children aged 6 to 59 months. Methods: Cross-sectional study with complex sampling conducted in primary health care units in Rio de Janeiro in 2014. Exposure was socioeconomic segregation estimated by the Getis-Ord Local Gi* statistic. Outcomes were minimum dietary diversity and percentage of ultra-processed foods (%UPF) in the diet. Logistic regression was used for dietary diversity and quantile regression for %UPF, with analyses performed in R. Results: Significant associations were found between high and medium segregation and the 60th, 70th, and 80th percentiles (high) and 60th and 70th percentiles (medium) of %UPF. The strongest associations were at the 80th percentile for high segregation (10.1; 95%CI: 1.5–16.4) and the 70th percentile for medium segregation (7.4; 95%CI: 0.7–15.0). Conclusion: Despite the high prevalence of minimum dietary diversity, the children’s diet shows a high proportion of ultra-processed foods, which is associated with residential socioeconomic segregation.Keywords:
Socioeconomic segregation, Surveys, Ultra-processed foods.Conteúdo:
Ainda não existe uma definição consensual na literatura para o conceito de qualidade da dieta, não havendo uma forma única de mensurá-la1. A diversidade alimentar é um dos aspectos da qualidade da dieta tradicionalmente investigados. Em estudos com crianças, ela tem sido aferida por meio do indicador de diversidade alimentar mínima (DAM): o atingimento da DAM está associado a maiores chances de adequação do consumo de alguns micronutrientes, crescimento infantil e diferentes desfechos em saúde2. Por outro lado, os alimentos ultraprocessados (AUP) expressam um aspecto negativo da qualidade da dieta3 e a participação relativa de AUP no total de energia tem sido recomendada como um indicador para sua avaliação4. A associação entre o maior consumo de AUP e maiores chances de ocorrência de diferentes desfechos de saúde na população infantil tem sido evidenciada na literatura5.
No Brasil, dois conceitos chave estão presentes nos Guias Alimentares: a diversidade alimentar, pautada na variedade de grupos de alimentos in natura ou minimamente processados, e a restrição de alimentos ultraprocessados na dieta6-7.
A qualidade da dieta pode ser influenciada por múltiplos fatores, como a segregação residencial, definida como o grau de separação física (pela raça, classe econômica ou outros tipos de fatores) em que dois ou mais grupos vivem em diferentes partes do ambiente urbano8.
A segregação residencial afeta os ambientes alimentares e o consumo alimentar individual. Internacionalmente, estudos apontam menor disponibilidade e variedade de alimentos in natura em áreas com maior segregação racial residencial9-10. Em relação à segregação socioeconômica residencial, no Brasil foi encontrada uma menor disponibilidade de estabelecimentos não saudáveis e do tipo misto nas áreas altamente segregadas11. Em nível individual, um estudo realizado em uma grande metrópole brasileira identificou menores chances de consumo de hortaliças e maiores chances de consumo de feijão em adultos que viviam nas áreas de alta segregação12.
Buscando contribuir para o avanço do conhecimento sobre segregação residencial e alimentação de crianças, esse estudo objetivou examinar a associação entre a segregação socioeconômica residencial e a qualidade da dieta em pré-escolares usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) no município do Rio de Janeiro. A hipótese desse estudo é que crianças que vivem em vizinhanças mais segregadas apresentam pior qualidade da dieta.
A realização deste estudo com pré-escolares atendidos na atenção primária do SUS é particularmente relevante, pois permite identificar como a segregação socioeconômica residencial influencia na qualidade da dieta. Essa abordagem territorializada oferece subsídios para o planejamento de ações intersetoriais que respondam às desigualdades sociais nos territórios e que podem apoiar o SUS na formulação de estratégias mais eficazes de promoção da alimentação saudável, considerando os determinantes sociais e espaciais da saúde.
Método
Desenho, População do Estudo e amostragem
Estudo seccional inserido na pesquisa “Alimentação e nutrição de pré-escolares usuários do SUS”, realizada no município Rio de Janeiro em 2014, com seleção da amostra em dois estágios, estratificação de unidades básicas de saúde - UBS com base no número médio mensal de atendimentos de crianças menores de cinco anos em 2012, número de crianças na faixa etária de 6 a 59 meses beneficiárias do Programa Bolsa Família em 2012 e faixa etária da criança; e seleção das crianças por meio de sorteio.
Os parâmetros utilizados para o cálculo do tamanho amostral da pesquisa principal foram: 252.000 crianças na faixa etária de interesse no município do Rio de Janeiro no ano de 2012; prevalência de anemia de 60,2% para crianças brasileiras usuárias do serviço de saúde e de 22% de deficiência de vitamina A para crianças da região Sudeste; precisão das estimativas de 5% e estimativa de 1,6 para o efeito de desenho amostral. Um total de 536 crianças de 6 a 59 meses foi analisado. Detalhes da amostragem estão disponíveis em Carneiro et al (2020)13. O poder para detectar pequenas diferenças entre grupos desbalanceados de segregação residencial e diversidade alimentar foi de aproximadamente 21%, considerando a complexidade da amostra. Ainda assim, o tamanho da amostra é suficiente para identificar efeitos moderados ou maiores.
Os responsáveis e as crianças foram convidados a comparecer às UBS em dias pré-agendados por meio de contato telefônico realizado pela equipe de pesquisa. As entrevistas com os responsáveis foram conduzidas por pesquisadores treinados. Foram aplicados um questionário fechado contendo perguntas sobre caracterização sociodemográfica e informações sobre o consumo alimentar do dia anterior e um recordatório alimentar de 24 horas – R24h. Para atender aos objetivos deste estudo, as crianças sem informações sobre o endereço (n=58) e aquelas para as quais os endereços informados não foram agrupados na delimitação das vizinhanças geográficas (agregados de setores censitários) (n=9) não foram incluídas neste estudo. Aquelas sem informação do R24h (n=4) não foram incluídas nas análises de participação dos AUP.
Variável de Exposição: Segregação Socioeconômica Residencial
A segregação socioeconômica residencial obtida pela estatística Getis-Ord Local Gi*. A estatística Gi* é um escore z ponderado espacialmente que mede o quanto a composição de renda de uma vizinhança (proporção de vizinhanças com renda de 0–3 salários mínimos) se desvia da composição de renda da área metropolitana maior (Rio de Janeiro)14. O cálculo da estatística Gi* envolveu três etapas: cálculo da proporção de famílias com renda de 0–3 salários mínimos mensais (1 Salário mínimo em 2010 = R$ 510,00) usando dados do Censo demográfico de 2010. Esse ponto de corte de renda foi adotado em outros estudos brasileiros de segregação socioeconômica residencial que utilizaram a estatística Gi* 11,12,14.
O segundo e terceiro passos consistiram na geração de matrizes de pesos espaciais e no cálculo da estatística Gi*, etapas realizadas no ArcGIS utilizando uma ferramenta de análise de pontos quentes. Com base na distribuição da segregação socioeconômica para o município do Rio de Janeiro, foram utilizadas as categorias de segregação que representam vizinhanças com pontuações de segregação ± 1 desvio padrão em relação às médias metropolitanas alta (Gi* ?1); média (Gi*entre -1 e 1) e baixa (Gi*? -1)14. A unidade de análise utilizada foram agrupamentos de setores censitários com até cinco mil residentes e características socioeconômicas semelhantes, definidas como vizinhanças. Foi utilizado o método de agregação espacial SKATER (Spatial 'K'luster Analysis by Tree Edge Remova) proposto por Assunção et al 200615, utilizando-se o software TerraView. Os critérios para a demarcação das vizinhanças consistiram na utilização dos seguintes indicadores socioeconômicos do Censo demográfico de 2010: proporção da população de 0 a 4 anos de idade; número de habitantes por domicílio; renda familiar média e proporção de brancos entre os moradores do domicílio14.
Para a classificação da segregação socioeconômica, os endereços das crianças foram georreferenciados por meio da interface de programação de aplicativos do Google e alocados nas mesmas áreas de recorte geográfico (vizinhanças).
Variáveis de desfecho: Indicadores de Qualidade da Dieta
A qualidade da dieta foi avaliada pelo indicador de DAM proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS)16, e pela participação de AUP no total de energia consumida.
Para a construção do indicador de DAM foi utilizado o questionário fechado e considerados os seguintes grupos alimentares: 1) leite materno; 2) cereais, raízes e tubérculos; 3) leguminosas e sementes; 4) derivados do leite; 5) carnes e fígado; 6) ovos; 7) frutas e hortaliças fonte de vitamina A; 8) outras frutas e hortaliças. Considerou-se que a criança havia atingido DAM se ela tivesse consumido pelo menos cinco desses oito grupos alimentares.
Para a construção do indicador de participação de energia oriunda de AUP no total de energia consumida, foram registradas no R24h as respectivas marcas e sabores desses produtos. Em seguida, os rótulos desses produtos foram fotografados em estabelecimentos que comercializavam alimentos em diferentes bairros da cidade. Com base nas quantidades de alimentos reportadas no R24h, a ingestão de energia oriunda de cada alimento foi estimada utilizando-se as tabelas de composição nutricional de alimentos consumidos no Brasil da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2008-200917 e as informações nutricionais dos rótulos dos AUP.
Na ausência de detalhamento das preparações culinárias reportadas pelos responsáveis ou de precário detalhamento na POF, foram utilizadas as seguintes estratégias, nesta ordem: fichas técnicas de preparações oferecidas nas creches do município do Rio de Janeiro, material integrante do Guia Alimentar do Programa de Alimentação Escolar destinado às Creches Municipais, publicado em 2012, e consulta a um livro de fichas técnicas18. Os cardápios padronizados do programa de alimentação escolar foram utilizados para imputação de dados faltantes do R24h, sendo considerando o período de permanência da criança na creche ou escola para a imputação das refeições.
Para as crianças menores de dois anos que receberam aleitamento materno, o volume de leite ingerido foi estimado conforme preconizado pela OMS19, considerando o peso e a faixa etária da criança para países de média e baixa renda. Os parâmetros adotados foram: 67 kcal/kg/dia para a faixa etária de 6–8 meses, 56 kcal/kg/dia para a faixa etária de 9–12 meses e 39 kcal/kg/dia para a faixa etária de 12–23 meses. Os alimentos e bebidas consumidos foram classificados segundo a NOVA em quatro grupos: (1) alimentos in natura ou minimamente processados; (2) ingredientes culinários processados; (3) alimentos processados; e (4) AUP.20
A energia proveniente do leite materno foi somada aos alimentos do Grupo 1 e a das fórmulas infantis, ao Grupo 4. Com base no valor de energia consumida (kcal) por cada criança, foi estimada a participação relativa de cada um dos quatro grupos de alimentos no total de energia da alimentação (% da ingestão total de energia). A participação relativa de AUP foi a variável de interesse.
Covariáveis
As variáveis potenciais confundidoras da relação entre segregação socioeconômica e qualidade da dieta foram selecionadas com base em revisão de literatura e análise exploratória dos dados: escolaridade materna (anos de estudo) e renda familiar em salários mínimos (Até 0,9; 1–1,9; 2–2,9 e 3 ou mais)21-22.
Análise de dados
Foram realizadas análises descritivas por meio de medidas de frequência, médias e desvio padrão. A DAM foi avaliada de forma dicotômica (não / sim), adotando-se como referência a categoria diversidade alimentar=sim. A baixa segregação foi utilizada como categoria de referência. Com base em modelos de regressão logística múltipla foi investigada a relação entre segregação socioeconômica e DAM. Foram estimadas as razões de chance de prevalência (POR) e seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC 95%). Por fim, regressão quantílica foi utilizada para estimar a relação entre segregação socioeconômica e diferentes quantis da participação de AUP (variável contínua) no total de energia. Essa regressão é útil quando a distribuição do desfecho não é normal, ou em situações em que a relação entre as variáveis de exposição e desfecho não seja linear. Assim, modelar apenas a média, como é feito na regressão linear, pode desconsiderar aspectos importantes da associação entre o resultado e os seus preditores23. Os coeficientes da regressão quantílica foram estimados com intervalos regulares, a cada dez quantis, do 10° ao 90°, e expressam o efeito da segregação socioeconômica nos diferentes quantis de participação de AUP no total de energia.
Dentre os modelos testados na regressão logística múltipla, foi observado o modelo com melhor ajuste das covariáveis (escolaridade materna e renda) por meio do critério AIC (Akaike Information Criterion). Segundo esse critério, quanto menor o valor de AIC produzido por um modelo, maior sua capacidade de explicar os dados adequadamente com uma quantidade menor de parâmetros 24. A inclusão da escolaridade materna e da renda como variáveis de ajuste na regressão quantílica foi fundamentada na literatura que destaca sua importância como determinantes sociais da alimentação21-22.
As análises foram realizadas no software estatístico R versão 4.2.1. A complexidade da amostra foi considerada nas estimativas produzidas utilizando-se o pacote survey, exceto para a regressão quantílica. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da SMS-Rio (nº 93/13).
Resultados
Foram avaliadas 469 crianças, dessas, 49,9% viviam em vizinhanças altamente segregadas, e 36,1% e 14,0% em vizinhanças de média e baixa segregação, respectivamente. Cerca de 46% das mães possuíam pelo menos o ensino médio completo e 61,7% das famílias viviam com menos de dois salários mínimos.
A prevalência de DAM foi superior a 70%. Em relação à média de participação relativa de cada grupo de alimentos no total de energia, 61,8% das calorias foram provenientes de alimentos in natura ou minimamente processados, 3,1%, de ingredientes culinários processados, 4,2%, de alimentos processados e 30,9%, de AUP (Tabela 1).
Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre a segregação socioeconômica e DAM (Tabela 2).
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[inserir tabela 2]
No modelo de regressão quantílica ajustado para escolaridade materna e renda familiar, observou-se associação estatisticamente significativa entre alta segregação e consumo de alimentos ultraprocessados para os quantis 60, 70 e 80 (Figura 1). Nesta categoria de segregação socioeconômica, o coeficiente mais alto com significância estatística foi encontrado no quantil 80 (10,1; IC95%= 1,5; 16,4). Já para a categoria de média segregação socioeconômica, foi observada associação estatisticamente significativa para os quantis 60 e 70 (Figura 2), sendo que o coeficiente mais alto com significância estatística foi encontrado no quantil 70 (7,4; IC95%= 0,7; 15,0). Ou seja, considerando a baixa segregação como referência, viver em áreas com alta e média segregação exerceu influência na participação relativa de AUP de 10,1% no quantil 80 e de 7,4% no quantil 70 na dieta, respectivamente.
[inserir figura 1]
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Discussão
A qualidade da dieta das crianças menores de cinco anos de idade usuárias do SUS é preocupante pois, apesar da alta prevalência de DAM, foi verificada expressiva participação de AUP no total de energia consumida. Nossos achados sugerem uma relação direta entre a segregação socioeconômica residencial e a participação de AUP na dieta.
As prevalências de DAM entre crianças brasileiras de 6 a 23 meses e de 24 a 59 meses foram de, respectivamente, 57,1% e de 54,8%, segundo resultados do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil-2019, no qual foi empregado o mesmo indicador utilizado no presente estudo25. As diferenças entre as prevalências encontradas na literatura e no nosso estudo podem ser explicadas em parte pelas diferenças de contexto social à época de realização dos inquéritos. As crianças estudadas no nosso estudo nasceram entre 2009 e 2014, período de êxito dos esforços de políticas de segurança alimentar e nutricional 26.
Nossos resultados somam-se a um conjunto de evidências que mostram alta participação de AUP na alimentação de crianças. Considerando estudos brasileiros realizados em crianças com faixa etária similar à nossa, a participação de AUP na literatura variou entre 23,8% (incluindo alimentos processados) em crianças entre seis a 24 meses de idade em Minas Gerais (n=231; estudo realizado entre 2016 e 2019)27 ; 25,8% em crianças entre 13–35 meses (n= 1.185; estudo realizado entre 2011-2013) no Maranhão22, até quase 50%, como apontado por Leffa et al. (2020) em um estudo realizado com crianças com 3 (43,4%) e 6 (47,7%) anos de idade (n=308) em Porto Alegre28 , linha de base em 2008-2009 e coletas realizadas em 2011 e 2014.
Em nosso estudo, foi observada maior frequência de alta segregação quando comparada à encontrada no estudo de Barber et al (2018) (alta segregação = 14%)14. Já era esperada maior prevalência no nosso estudo, uma vez que todas as crianças amostradas eram usuárias do SUS com indicadores sociodemográficos desfavoráveis enquanto que, no estudo de Barber et al (2018)14, a população de estudo era de servidores públicos13. Apesar de a segregação ter sido trabalhada em três níveis que expressam um gradiente de intensidade, considerando o perfil da população estudada, viver em vizinhanças menos segregadas não necessariamente implica maior disponibilidade de recursos e de ambientes promotores de uma alimentação adequada e saudável.
Até o presente momento não encontramos estudos que tenham investigado a relação entre alimentação e segregação socioeconômica residencial em crianças e são poucos aqueles que investigaram a segregação e o consumo alimentar individual. Entretanto, estudos que utilizaram outros marcadores de desigualdade socioeconômica como renda, escolaridade materna e outros reforçam a existência de iniquidades sociais para práticas alimentares saudáveis, que parecem começar ainda na infância29-31.
Em um estudo seccional realizado em Minas Gerais com adultos, viver em áreas com alta segregação socioeconômica esteve associado a maiores chances de consumo regular de feijão (cinco ou mais vezes por semana: OR = 1,85; IC 95%: 1,07-3,19). Para as autoras, o maior consumo de feijão nos bairros altamente segregados indica que a segregação pode estar relacionada com a preservação de alguns aspectos da cultura alimentar. Por outro lado, também foram observadas menores chances de consumo regular de hortaliças (cinco ou mais vezes por semana: OR = 0,62; IC 95%: 0,39-0,98) quando comparadas às chances de consumo entre os indivíduos que residiam em áreas com baixa segregação, após ajuste para fatores individuais e percepção do ambiente alimentar12.
Os estudos internacionais sobre segregação residencial e alimentação majoritariamente investigam a relação entre a segregação e o ambiente alimentar, evidenciando menor disponibilidade de alimentos in natura ou minimamente processados e maior disponibilidade de AUP em áreas com alta segregação racial nos Estados Unidos da América9. Além das diferenças na disponibilidade de alimentos saudáveis, também foi observada menor variedade de alimentos in natura10. Diferentemente dos estudos internacionais, em pesquisa realizada em Minas Gerais, a segregação socioeconômica esteve associada a diferenças na distribuição de estabelecimentos de vendas de alimentos, com maior disponibilidade de venda de AUP nas áreas com baixa segregação. Em geral, as áreas altamente segregadas apresentaram menor número de estabelecimentos de venda de alimentos11.
Altos níveis de iniquidade e segregação socioeconômica tendem a criar um espaço urbano com menor disponibilidade de estabelecimentos que comercializam alimentos de boa qualidade e a preços acessíveis. A disponibilidade de alimentos não é a única dimensão do ambiente alimentar, mas diferenças de disponibilidade de alimentos in natura ou minimamente processados são preocupantes, uma vez que essas disparidades podem ser obstáculos para o acesso a alimentos mais saudáveis32. No presente estudo não foram mensuradas dimensões do ambiente alimentar em que as crianças estão inseridas, entretanto o ambiente alimentar foi compreendido como um mediador da relação entre a segregação socioeconômica e o consumo alimentar individual11 e não como um confundidor dessa relação.
Esse estudo apresenta algumas limitações. A alta prevalência de DAM em todos os níveis de segregação (dados não mostrados) pode justificar a ausência de associação com a segregação socioeconômica residencial. Outra limitação refere-se à utilização de somente um recordatório alimentar, não sendo possível levar em conta a variabilidade intraindividual do consumo alimentar. Portanto, nossas estimativas podem não refletir o consumo habitual das crianças, o que pode impactar as estimativas das associações observadas33.
Outra limitação refere-se à não inclusão do desenho amostral para a modelagem da regressão quantílica, por ausência de pacotes estatísticos disponíveis no software utilizado para a análises estatísticas, o que pode impactar a validade externa dos nossos achados. Os resultados da regressão quantílica podem não refletir adequadamente a nossa população de estudo, limitando a generalização dos nossos achados.
Também merece atenção o fato de que a população de estudo desta pesquisa foram crianças atendidas em UBS, o que pode limitar a extrapolação dos nossos resultados. Os resultados aqui apresentados refletem o cenário de crianças em idade pré-escolar atendidas nas UBS do Rio de Janeiro. Esse estudo apresenta como pontos fortes ser pioneiro entre os estudos brasileiros que têm o objetivo de estudar a relação entre qualidade da dieta e segregação socioeconômica na infância, fase da vida caracterizada por um intenso desenvolvimento. Foram utilizadas covariáveis reconhecidamente associadas à qualidade da dieta infantil e a desigualdades socioeconômicas na alimentação infantil, como escolaridade materna e renda familiar21-22. Outros pontos fortes foram a utilização de uma medida direta da segregação; a utilização de um modelo que permite avaliar efeito não apenas na média de distribuição do desfecho; e o uso de duas dimensões de interesse para a avaliação da qualidade da dieta: diversidade alimentar e consumo de AUP.
A investigação da relação entre segregação e qualidade da dieta pode subsidiar ações para enfrentamento de desigualdades sociais com vistas ao fortalecimento e aprimoramento de políticas e programas que contemplem ações estruturais, como o investimento em ambientes promotores de uma alimentação mais adequada e saudável.
Conclusão
A qualidade da dieta de crianças menores de cinco anos de idade usuárias da atenção primária na cidade do Rio de Janeiro é preocupante pois, apesar da alta prevalência de diversidade alimentar mínima, foi observada elevada participação de ultraprocessados na alimentação. A segregação socioeconômica se mostrou associada a quantis mais elevados de consumo de alimentos ultraprocessados.
Agradecimentos
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
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