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0203/2006 - Concepções que integram a formação e o processo de trabalho dos agentes comunitários de saúde: uma revisão da literatura
CONCEPTIONS THAT MAKE UP THE TRAINING AND WORK PROCESS OF COMMUNITY HEALTH AGENTS: A BIBLIOGRAPHICAL REVIEW

Autor:

• Vera Joana Bornstein - Vera Joana Bornstein - Rio de Janeiro, RJ - ENSP/FIOCRUZ - <vejoana@ensp.fiocruz.vr>


Área Temática:

Não Categorizado

Resumo:

O presente artigo é resultado de uma revisão bibliográfica que tem como objetivo sistematizar as referências da literatura relacionadas às concepções que integram a formação e o processo de trabalho dos agentes comunitários de saúde, no âmbito do Programa de Agentes comunitários de Saúde (PACS) e do Programa Saúde da Família (PSF). Foram consultados 504 artigos de periódicos científicos, manuais e documentos oficiais publicados até outubro de 2004 dos quais 49 foram selecionados e consultados integralmente. Os resultados encontrados foram sistematizados em quatro eixos temáticos, tendo sido abordadas as polêmicas levantadas pelos autores, das quais se destacam: o “discurso mudancista” presente nos documentos oficiais, que definem o PSF como estratégia de reorientação de modelo de Atenção Básica; a amplitude e ambigüidade presentes no entendimento do papel de mediador e na definição das atribuições do agente comunitário de saúde e as lacunas existentes na sua formação.
Palavras-chave Agente Comunitário de Saúde; Mudança de Modelo de Atenção; Mediação, Atribuições e Formação.

Abstract:

This paper is the result of a bibliographical review which aims to systemize literature references related to conceptions that make up the training and work process of community health agents, within the Community Health Agents Program (PACS) and the Family Health Program (PSF). 504 articles from scientific periodicals, manuals and official documents published up to October 2004 were consulted (of which 49 were selected and consulted in their complete version). The findings were systemized into four thematic lines; the controversies held by the authors are reviewed, among which stand out: the “intention of change statement” that exists in the official documents, defining PSF as a reorientation strategy in the primary health care model; the width and ambiguity in the understanding of the community health agent role as a mediator and in the definition of his assignments, as well as the gaps in his training.
Keywords: Community health agent; Reorientation in health care model; mediation, assignments and training.

Conteúdo:

1. INTRODUÇÃO
Segundo Souza1 a criação do PACS recuperou diversas e diferentes experiências no país, sendo que a experiência de Agentes Comunitários do Ceará, foi a que “com pioneirismo e abrangência estadual”, mais contribuiu para o desenho da execução do programa nacionalmente. Em publicação do Ministério da Saúde2 também se destaca esta experiência que se desenvolveu a partir de 1987, tendo sido criada inicialmente como “frente de trabalho” em uma conjuntura de seca, onde um grupo formado principalmente por mulheres, passou a realizar ações básicas de saúde em 118 municípios do sertão cearense.
A partir de 1991 o Ministério da Saúde começa a implantar o Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde (PNAS), que em 1992 passa a se chamar Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Em 1994, o Ministério da Saúde cria o Programa Saúde da Família (PSF). Todos estes programas estavam vinculados à Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), até que, em 1995, o PACS e o PSF foram transferidos para a Secretaria de Assistência à Saúde (SAS). Em meados de 1999 estes programas passaram para a Coordenação da Atenção Básica da Secretaria de Políticas de Saúde (SPS) e neste mesmo ano, o governo federal define as atribuições do ACS, no Decreto nº 3.189, onde estabelece que ao ACS cabe desenvolver atividades de prevenção de doenças e promoção da saúde, por meio de ações educativas individuais e coletivas, nos domicílios e na comunidade.
Ainda que a existência de agentes de saúde remonte há vários anos, a profissão foi criada na Lei 10.507 de 10 de julho de 2002. De acordo com o art. 2º,
“A profissão de Agente Comunitário de Saúde caracteriza-se pelo exercício de atividade de prevenção de doenças e promoção de saúde, mediante ações domiciliares ou comunitárias individuais ou coletivas, desenvolvidas em conformidade com as diretrizes do SUS e sob supervisão do gestor local deste”. 3 (p.37).
Segundo informações do Ministério da Saúde o total de ACS existentes no Brasil em dezembro de 2004 chegava a aproximadamente 200.000.
A história do PACS e do PSF não constitui o escopo do presente artigo, no entanto, informações mais detalhadas sobre este tema podem ser encontradas nas referências: Brasil2; Brasil4; Brasil5; Souza1; Viana & Dal Poz6. O que pretendemos aqui analisar são as concepções que se relacionam com a formação e o processo de trabalho dos ACS e que estão presentes na literatura sobre Saúde da Família.
2. MATERIAL E MÉTODO
O presente artigo de revisão bibliográfica tem como objetivo sistematizar as referências da literatura relacionadas às concepções que integram a formação e o processo de trabalho dos agentes comunitários de saúde (ACS), no âmbito do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e do Programa Saúde da Família (PSF).
A pesquisa bibliográfica desenvolvida no presente artigo é parte de pesquisa acadêmica orientada, na presente fase, para a discussão e a justificativa das categorias de análise dos dados oriundos do trabalho de campo (Alves-Mazzotti7), a se realizar. Tais categorias são desdobramentos específicos das dimensões ou eixos temáticos por meio dos quais se procura entender o papel mediador do agente comunitário de saúde. Conseqüentemente, a revisão dos artigos, documentos e manuais foi organizada e sistematizada em eixos temáticos significativos para este entendimento, a saber:
• Mudança do Modelo de Atenção, considerando que este tema possibilita o dimensionamento da importância que o ACS tem na busca de uma nova estratégia de reorientação do modelo de Atenção Básica em Saúde e na reorganização dos serviços e ações de saúde.
• Mediação/Elo, visando conhecer a expectativa existente nos documentos oficiais e o que já havia sido escrito por outros autores com relação a este papel dos agentes de saúde.
• Perfil profissional e atribuições, estabelecidos pela Instituição e pelos quais os agentes de saúde são avaliados e cobrados.
• Formação onde está presente o conhecimento em saúde institucionalmente considerado relevante para seu papel de mediador.
Em todos os eixos, foram abordadas as áreas de consenso e as de controvérsia entre os autores consultados.
Utilizamos os seguintes conjuntos de palavras (AND): Conhecimento Saúde; Conhecimento Agentes; Conhecimento Popular Saúde; Formação Agentes; Capacitação Agentes; Agentes Comunitários de Saúde; Agente Comunitário de Saúde; Agentes de Saúde; Agente Saúde; Agente Comunitário; Saúde da Família. O maior número de referências foi encontrado na base de dados da SCIELO nos conjuntos: Conhecimento Saúde com 272 referências; Saúde da Família: 168 referências; Agente Comunitário: 64 referências. A busca foi ampliada para Agente OR Saúde, para a qual foram encontrados 2592 resultados no acervo da biblioteca da ENSP, cujos títulos e/ ou resumos fizeram parte da seleção.
A pesquisa bibliográfica concentrou-se em artigos de periódicos científicos, manuais e documentos oficiais publicados até outubro de 2004. Foram eliminados os artigos que incluindo a palavra ACS, tinham seu principal foco em indicadores de saúde, aspectos financeiros, administrativos, e temas de interesse específico regional, como por exemplo, cólera na Amazônia. Foram selecionados 49 títulos consultados integralmente.
O presente trabalho é o resultado da análise dos artigos encontrados nas seguintes bases de dados: acervo da biblioteca da ENSP (Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz – www.bvssp.cict.fiocruz.br,); Biblioteca Virtual do Ministério da Saúde, ( www.saudepublica.bvs.br) em literatura científica, portal de bases bibliográficas, Brasil; Editora do Ministério da Saúde (http://dtr2001.saude.gov.br/editora/produtos); Portal da CAPES (www.capes.gov.br), Periódicos/Textos Completos/Ciências da Saúde/Saúde Coletiva); Portal da SCIELO Brasil (www.scielo.br), em pesquisa de artigos; Revista Interface: comunicação, saúde, educação (www.interface.org.br).
3. RESULTADOS POR EIXOS DE ANÁLISE
3.1. Mudança de Modelo de Atenção.
A partir de 1997 o PACS e o PSF passam a ser prioridades do Plano de Metas do Ministério da Saúde sendo que em documento de sua Secretaria Executiva8, o PACS é considerado uma estratégia transitória para o PSF. Por outro lado, nos documentos oficiais do Ministério da Saúde, o PSF é apresentado como uma estratégia que visa a reorientação do modelo assistencial, substituindo o modelo tradicional de assistência orientado para a cura de doenças e hospitalocêntrico, por um modelo cujas principais características são o enfoque sobre a família a partir de seu ambiente físico e social, como unidade de ação; a adscrição de clientela através da definição de território de abrangência da equipe; estruturação de equipe multiprofissional; a ação preventiva em saúde; a detecção de necessidades da população ao invés da ênfase na demanda espontânea; e a atuação intersetorial com vistas à promoção da saúde.
Viana & Dal Poz6 identificam dois tipos de reforma dos sistemas de saúde, nomeados como big bang e incremental. O primeiro se caracteriza pela introdução de modificações expressivas e significativas no funcionamento do sistema de saúde, de forma rápida e pontual. O segundo, a reforma incremental, se baseia em pequenos ajustamentos sucessivos com um conjunto de modificações no desenho e operação da política. Mencionam o PSF como uma estratégia de reforma incremental, considerando que este aponta para mudanças importantes na forma de remuneração das ações de saúde e nas formas de organização dos serviços.
Entre as publicações revisadas, poucas são aquelas que apontam questões críticas na implantação do PACS e do PSF. Franco & Merhy9 têm feito questionamentos com relação ao que chamam de “discurso mudancista” que atribui ao PSF o papel de estratégia para a reorganização da prática assistencial em novas bases e colocam que os debates sobre o PSF têm se caracterizado por uma cada vez maior despolitização e superficialidade. Consideram que a observação das experiências indica uma defasagem entre o “discurso mudancista” e as práticas assistenciais que implementa, mostrando que não se tem conseguido realizar a “missão prometida”. Para fundamentar esta afirmação, sustentam que:
a) O PSF baseia suas propostas nos conhecimentos relacionados à epidemiologia e à vigilância à saúde o que não seria suficiente em muitas situações onde o conjunto da prática clínica seria essencial para atender as necessidades de assistência.
b) Falta um esquema para atender a demanda espontânea que do ponto de vista do usuário é uma prioridade.
c) A proposta do PSF/PACS é apresentada pelo Ministério da Saúde com um alto grau de normatividade.
d) A mitificação do médico generalista como se este profissional pudesse por si só implementar novas práticas de saúde junto à população.
e) As “visitas domiciliares compulsórias” são criticadas, principalmente no que se refere aos médicos e enfermeiras já que estas deveriam acontecer de acordo com indicação explícita para elas e não como rotina, podendo inclusive significar uma excessiva intromissão na privacidade das pessoas.
Os autores concluem que a implantação do PSF por si só não resulta necessariamente na mudança do modelo assistencial. Pode haver Unidades de Saúde da Família médicocentradas assim como outras usuáriocentradas, o que vai depender dos diversos modos de agir dos profissionais na relação entre si e com os usuários.
Outro trabalho que também analisa criticamente as experiências com ACS é o artigo de Martins et al.10 A análise, no entanto, é feita do ponto de vista de um grupo de seis professoras-enfermeiras que se referem à aproximação do trabalho do ACS às práticas de enfermagem. As autoras consideram vantajosa a incorporação do ACS nos serviços de saúde por ser uma incorporação quase imediata, de baixo custo e por facilitar a mediação entre a população e o serviço de saúde através principalmente de ações educativas e de promoção à saúde.
A polêmica sobre o trabalho do ACS como “serviço para pobres” ou como complementar aos serviços já existentes é levantada por Giffin & Shiraiwa11. Argumenta-se que durante muitos anos no Brasil, a rede básica de saúde pública vem sendo usada principalmente pela população que necessita maiores investimentos na busca de melhores soluções devido a sua situação sanitária e ao seu perfil de morbi-mortalidade. O serviço do ACS seria, portanto uma busca de alternativa aos serviços tradicionais.
Ainda sobre o mesmo tema de “serviço para pobres” ou serviço complementar àqueles já existentes, Fernandes12 alerta sobre o risco da implantação de projetos que perpetuem um modelo assistencial desigual e discriminatório onde exista uma forma de organização dirigida às classes ricas com profissionais altamente especializados e utilização de tecnologia sofisticada e outra forma, dirigida às populações carentes, baseada em recursos simplificados.
Favoreto & Camargo Jr13 afirmam também que na maioria dos municípios examinados em seu estudo, tem predominado a estratégia de extensão de cobertura assistencial marcada pela introdução de uma prática de medicina simplificada, dirigida às populações menos favorecidas. Apontam ainda vários problemas em relação à resolutividade dos serviços de saúde da família tais como: o sistema de referência e contra-referência, a rigidez na conformação profissional da equipe de saúde da família, o despreparo e qualificação insuficiente dos médicos de família. Entendem que a ênfase com relação à mudança do modelo assistencial é feita sobre as formas de organização e controle e sobre a normatização dos processos de trabalho sendo, no entanto necessário, aprofundar um novo entendimento dos profissionais, no que se refere a seus papeis e ao contexto em que atuam a fim de que possam mudar sua prática. Este entendimento refere-se também às representações sociais de saúde, doença e cura da população e à participação das dimensões biopsicossociais do processo de adoecimento.
3.2. Mediação/Elo
O ACS como mediador, ou elo entre a comunidade e os serviços de saúde ou entre saberes diferentes tem sido abordado por vários autores e documentos oficiais,11,12,14,15,16,17,18,19,20.
No manual “O trabalho do agente comunitário de saúde” (Brasil21), uma personagem que representa uma enfermeira do PACS, expressa que o ACS é um agente de mudanças na medida em que aprende “com as experiências das pessoas, com os profissionais de saúde, compartilhando o que foi aprendido com a própria comunidade”.
Ainda no mesmo manual, aponta-se a importância do intercâmbio de conhecimento entre todos os membros de uma comunidade já que cada um tem um jeito de contribuir e que toda contribuição tem valor. Esta troca faria parte de um processo de educação para a participação em saúde e o ACS precisaria estar atento a este processo.
Mendonça15 destaca a característica singular do ACS no que se refere a seu pertencimento à comunidade, como forma de “... garantir a vinculação e a identidade cultural de grupo com as famílias sob sua responsabilidade”.
Ao comentar a grande penetração dos agentes junto à população das áreas cobertas, Solla et al.19 fundamentam-se na pesquisa realizada em 12 municípios do Estado da Bahia, onde o PACS estava implantado revelando que a maioria dos entrevistados, além de conhecer o ACS, também sabia seu nome, seu endereço e maneiras de o convocar quando preciso. Destacam o cumprimento da função de elo exercida pelos ACS que é percebido pelos usuários por meio da facilitação do acesso à unidade básica de saúde. No entanto, ao abordar a contra-referência a avaliação dos supervisores dos ACS não foi positiva. Outro ponto crítico apontado é a dificuldade dos ACS em encontrar respostas positivas aos encaminhamentos realizados para os serviços de saúde de maior complexidade o que dificulta seu papel de mediador e resulta potencialmente na “... perda de legitimidade do ACS frente à comunidade e o desestímulo do agente para o desempenho de suas ações”.
Fernandes12 alerta sobre o risco dos agentes terem uma “participação passiva” na sua interação com a comunidade, na medida em que assimilem o discurso dos técnicos de fora e o reproduzam de forma mais ou menos mecânica.
Na discussão dos resultados da pesquisa realizada no Piauí, Pedrosa & Teles18 comentam que os agentes de saúde com liderança e participação em movimentos sociais, mudavam sua forma de relacionamento com a comunidade ao se tornarem agentes de saúde, ou seja, na medida em que assumiam as regras instituídas no contrato e nas metas de produtividade. Por outro lado, assinalam o risco de que na intermediação entre unidade de saúde e usuários, os agentes reproduzam comportamentos calcados em velhas concepções de favores e de facilitação do acesso. Reportam-se ainda, à pressão sofrida pelos ACS sobre seu trabalho por parte das organizações locais e também à rejeição por candidatos não selecionados.
Ainda sobre a mediação do acesso no sentido de sua facilitação, Trad et al20 referindo-se à avaliação qualitativa da satisfação de usuários de PSF em cinco municípios da Bahia, confirmam que os ACS são valorizados pelos usuários pela facilidade em transitar no sistema formal de atenção à saúde, o que por sua vez também pode facilitar o acesso ao cuidado dos moradores. No entanto, quando se trata do acesso a serviços de maior complexidade, a avaliação indica que de uma forma geral, em todos os municípios pesquisados, o sistema de referência e contra-referência vem funcionando de modo informal, utilizando-se de contatos pessoais com profissionais ligados a setores de média e alta complexidade.
Uma referência importante sobre o eixo ACS/mediador é o artigo de Giffin & Shiraiwa11 publicado em 1989. No entanto, é necessário levar em consideração que este artigo se refere a experiência anterior à adoção do PACS/PSF como política oficial. Algumas das questões polêmicas relacionadas com este eixo, apresentadas neste artigo e que considero estarem presentes nas experiências atuais são:
• Mais do que uma duplicação dos serviços da rede por meio da ação dos ACS, a visita domiciliar é geralmente uma cobertura mais ampla do que a realizado normalmente.
• Sobre a prática educativa e seu caráter dominador ou transformador, o risco da educação ser dominadora é colocado pelas autoras na medida em que o ACS tem objetivos pré-definidos com relação à melhoria da saúde da população e procura convencê-la sobre o que deve ser feito. Como aspecto favorável a uma educação transformadora, as autoras mencionam o fato da própria formação do ACS já ser uma “democratização do saber médico”.
Nunes et al.17 consideram que o ACS pode funcionar ora como facilitador, ora como empecilho nessa mediação e no diálogo entre os dois tipos de saberes e práticas. Por um lado o ACS convive com a realidade e as práticas de saúde do bairro onde mora e trabalha e por outro lado a sua formação acontece geralmente a partir de referenciais biomédicos. Facilita também seu papel de mediador, o conhecimento sobre as dinâmicas sociais da comunidade. Os autores apontam a importância de explorar melhor a mediação entre saberes realizada pelos ACS, alertando que esta pode ser entendida como uma tradução no sentido que vai do universo científico ao popular. A mediação poderia ser feita no sentido de encontrar uma melhor estratégia para que as normas e as metas dos serviços sejam entendidas e assimiladas pelas “classes populares” ou no sentido de encontrar nos serviços uma abertura para entender a lógica e a dinâmica local.
As atividades educativas desenvolvidas autonomamente pelos ACS surgem da percepção de que as proposições de mudanças de hábitos e comportamentos (alimentar, higiênico e outros) encontram várias formas de resistência por parte da população. Pedrosa & Teles18 mencionam que diante de dificuldades de aceitação com relação a palestras para gestantes, idosos e hipertensos, os ACS criam alternativas através da promoção de outros tipos de eventos como passeios, cartazes e dramatizações.
Nogueira et al.16 ampliam o conceito de mediação, quando apontam que a função de “ponte” pode ser entendida também com relação à facilitação do acesso aos direitos de cidadania de modo geral. O fato do agente de saúde visitar os moradores da comunidade em suas casas e entrar em contato com situações que muitas vezes não estão diretamente relacionadas à capacidade de resposta do setor saúde estende seu papel de mediação a distintas esferas de organização da vida social. A visita no domicílio das famílias, criaria também uma nova relação com a comunidade diferente do que quando a pessoa vai à Unidade de Saúde onde não se conhece sua origem. Com base nos depoimentos colhidos, os autores propõem que o papel de mediador social exercido pelo ACS seja assim resumido: “é um elo entre os objetivos das políticas sociais do Estado e os objetivos próprios ao modo de vida da comunidade; entre as necessidades de saúde e outros tipos de necessidades das pessoas; entre o conhecimento popular e o conhecimento científico sobre saúde; entre a capacidade de auto-ajuda própria da comunidade e os direitos sociais garantidos pelo Estado”. (NOGUEIRA,2002,p.10).
3.3. Perfil profissional e atribuições
As atribuições básicas dos ACS estão estabelecidas na Portaria GM/MS nº 1.886 de 18 de dezembro de 1997 sendo detalhadas num total de 33 itens. São mencionadas atribuições que fazem parte do conhecimento da área (cadastramento, diagnóstico demográfico, definição do perfil sócio econômico, mapeamento e outras); atribuições que fazem parte do acompanhamento, monitoramento, prevenção de doenças e promoção da saúde, sendo detalhados os grupos populacionais que deverão ser acompanhados (gestantes, puérperas, hipertensos e outros), os temas que deverão ser abordados (aleitamento materno, imunização, reidratação oral e outros) e as necessidades de monitoramento (diarréias, infecções respiratórias agudas, tuberculose, hanseníase e outros). São mencionadas ainda, ações educativas referentes à prevenção do câncer, métodos de planejamento familiar; saúde bucal, nutrição e atribuições que não são específicas da saúde como ações educativas para preservação do meio ambiente; abordagem dos direitos humanos e estimulação à participação comunitária para ações que visem a melhoria da qualidade de vida.
A maioria das “atribuições” mencionadas é composta por atividades relacionadas com os programas desenvolvidos pelas unidades de saúde e têm caráter biomédico e individual. Ainda que se mencione a necessidade de promover “ações coletivas”, os instrumentos de informação que devem ser preenchidos pelos ACS e que fazem parte do SIAB (Sistema de Informação da Atenção Básica), não detalham este tipo de trabalho. A ênfase do SIAB é feita sobre fichas que permitem a avaliação da produtividade baseada em ações individuais e avaliação de indicadores de saúde.
Nogueira et al.16 trazem a discussão sobre o perfil do ACS e seu enquadramento em relação a outras profissões de saúde. Pontuam que existem duas interpretações: uma, onde o ACS é entendido como pertencendo ao grupo de enfermagem por realizar cuidados de saúde e outra, onde o ACS é visto como um trabalhador genérico que não tem similar entre as profissões de saúde tradicionais. Trata-se de um trabalhador “sui generis” com identidade comunitária, que realiza tarefas que não se restringem ao campo da saúde, como por exemplo a facilitação do acesso aos direitos de cidadania de forma geral.
Silva & Dalmaso22 referem-se a duas dimensões principais que podem ser identificadas na proposta de atuação do ACS: uma mais estritamente técnica, onde se situa o atendimento aos indivíduos e famílias, a prevenção de agravos e o monitoramento de grupos ou problemas específicos, e outra mais política, onde a saúde é entendida no contexto mais amplo e onde se insere a organização da comunidade e a transformação das condições de vida. Mencionam também a dimensão de assistência social esclarecendo que esta pode ser encontrada na prática, ainda que não constasse dos programas oficiais em 2002. Os autores entendem que ao assumir estas dimensões, cria-se um dilema permanente para o agente, na medida em que a convivência entre as diferentes dimensões entra em conflito na dinâmica do cotidiano. Entendem que o saber sistematizado e os instrumentos existentes na área da saúde não são suficientes para suprir as necessidades de trabalho dos agentes, tanto no que se refere à abordagem familiar, como com relação ao contato com situações de vida precária. A falta de saberes sistematizados para o pólo mais político e de assistência social acaba fazendo com que os ACS trabalhem mais com o senso comum e com a religião. Ressaltam ainda a variedade de expectativas existentes sobre a função do ACS que ora se vê como educador em saúde, ora como organizador de acesso, como “olheiro” da equipe na identificação e captação de necessidades.
Em debate sobre o texto mencionado anteriormente, Tomaz23 alerta sobre a “super-heroização” e a “romantização” do ACS quando se atribui a este profissional o papel de ser a “mola propulsora da consolidação do SUS”. Entende que suas atribuições e seu papel têm sido distorcidos sobrecarregando seu trabalho. Comenta também, que o processo de transformação social é um processo lento e é papel de todos os cidadãos.
Em seus comentários sobre o texto de Silva & Dalmaso22, Nogueira24 afirma que a sobrecarga de expectativas com relação ao ACS não decorre do fato de haver descrições discrepantes sobre suas funções, mas principalmente pelas diferenças nas concepções ético-políticas sobre como a saúde pode ser promovida nessa interface entre auto-organização comunitária e sistemas de Estado. Identifica uma visão comunitarista, para a qual o que o ACS “... faz depende dos problemas vividos e referidos pelas famílias, como prioridades que não emanam dos programas de Estado” e uma visão universalista e estatista para a qual o ACS precisa ter um perfil técnico bem estruturado, um preparo técnico uniforme e um cargo nas estruturas organizacionais do Estado. Concorda com Silva & Dalmaso sobre a falta de abordagens e instrumentos adequados de preparação do ACS de uma maneira geral.
Em pesquisa realizada em Bauru/SP25 chama-se a atenção ao papel de apoio emocional e psicológico assumido pelo ACS e ao papel de adequar as orientações sobre saúde à realidade da comunidade.
Em documento recente do Ministério da Saúde em conjunto com o Ministério da Educação26 toma-se como pressuposto para o delineamento do Perfil de Competências Profissionais do ACS, a “valorização da singularidade profissional do ACS, como um trabalhador de saúde com interface na assistência social, educação e meio ambiente”. Para a construção do “Referencial curricular para o curso técnico de agente comunitário de saúde”, se define que o ACS é um trabalhador do âmbito específico do SUS ao mesmo tempo em que se aponta sua relevância no contexto de mudança das práticas de saúde e o papel social do ACS junto à população. Retoma-se ainda, a formulação de Nogueira et al.16 sobre o papel de mediador social do ACS.
3.4. Formação
Segundo o Guia Prático do PSF27, o candidato à vaga de ACS não precisa ter conhecimentos prévios na área de saúde. Após sua aprovação, ele receberá treinamento sobre as ações que deverá desenvolver e estará sob constante supervisão do seu enfermeiro/supervisor.
A conclusão do ensino fundamental passa a ser uma exigência a partir da aprovação da Lei nº 10.507/ julho 2002 que criou a profissão dos ACS e nesta mesma Lei é colocada a exigência de haver concluído com aproveitamento o curso de qualificação básica para sua formação. Ao Ministério da Saúde cabe definir o conteúdo programático deste curso.
Em documentos oficiais27,28 existe a recomendação de que toda a Equipe de Saúde da Família (ESF) inicie seus trabalhos por meio de um processo específico de capacitação, chamado de Treinamento Introdutório, que visa discutir os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) e do PSF instrumentalizando as equipes na organização inicial do seu processo de trabalho. Esta instrumentalização é proposta nos Cadernos de Atenção Básica: o Caderno 2 29 apresenta orientações sobre o Treinamento Introdutório e o Caderno 3 aborda o processo de educação permanente30. A responsabilidade pela capacitação e pela educação permanente dos profissionais inseridos nas equipes do PSF é atribuída, a partir de 1997, aos Pólos de Capacitação estruturados por redes de instituições de ensino e serviços.
No manual “O trabalho do agente comunitário de saúde21”, que faz parte do conjunto de materiais de apoio ao processo de capacitação do ACS, o conceito de saúde trabalhado é amplo, incluindo questões relacionadas com alimentação, moradia, trabalho, educação, lazer, cultura, meio ambiente, terra, participação popular, solidariedade, e outros fatores. Os conceitos de prevenção de doenças e promoção da saúde estão presentes no manual em vários trechos, assim como os princípios do SUS. Outro conceito que permeia o manual é o conceito de risco. Faz-se a menção de situação de risco, fatores de risco, áreas de risco, famílias em situação de risco. Apesar do risco ser apresentado na maioria dos capítulos como uma situação dinâmica, no texto de apoio sobre Diagnóstico comunitário fala-se de indivíduos e grupos de risco, e que estes poderão constituir-se no “alvo” prioritário das atividades e serviços de saúde. A identificação do risco é a primeira das ações sugeridas ao ACS e este é, portanto um conceito chave na capacitação dos ACS.
Entre os artigos e documentos revisados, poucas foram as menções às experiências de formação dos ACS. O artigo de Nunes et al.17 refere-se à fala dos ACS que ao compor a equipe de saúde da família consideram estar assumindo a responsabilidade de dominar certos conteúdos e práticas referentes à biomedicina. Por meio da formação que recebem, têm um maior acesso ao saber biomédico que por ser mais valorizado do que o conhecimento popular lhes conferiria maior prestígio social. Esta seria uma contradição já que o conhecimento característico do ACS é o saber popular em saúde e o conhecimento sobre a dinâmica social da comunidade onde trabalha. Os autores fazem ainda um questionamento sobre a consciência dos ACS com relação à importância deste conhecimento que lhes é genuíno e sobre o preparo das equipes de saúde da família para incorporar este conhecimento.
Em relação aos programas de saúde de forma geral, Giffin & Shiraiwa11 ressaltam a importância de abordar as necessidades sentidas e soluções apresentadas pela população, sem negar a responsabilidade técnica em apontar outras necessidades e a busca de soluções. Isso implicaria na criação de espaços onde esta troca pudesse ser legitimada e a disponibilidade de relativizar todos os saberes.
Silva & Dalmaso22, apontam a importância de flexibilidade nos processos e metodologias de preparação de pessoal, tendo em vista a enorme variedade de contextos em que se implanta o Programa. Como uma das estratégias para o desenvolvimento do trabalho do agente comunitário, os autores mencionam as atividades de supervisão dos trabalhos a fim de manter sua qualidade.
Tomaz23 ressalta três aspectos que devem ser levados em conta ao discutir processo de formação ou qualificação de recursos humanos: o perfil do profissional a ser capacitado, suas necessidades de formação e qualificação e que competências devem ser desenvolvidas ou adquiridas no processo educacional. Entende que “o processo de qualificação do ACS ainda é desestruturado, fragmentado, e, na maioria das vezes, insuficiente para desenvolver as novas competências necessárias para o adequado desempenho de seu papel”. Defende a necessidade de utilizar métodos de ensino-aprendizagem inovadores, reflexivos e críticos, centrados no estudante, e, quando possível, incluindo novas tecnologias, como a educação à distância. Inclui ainda, a necessidade de abordar no programa educacional, competências “transversais” como a capacidade de trabalhar em equipe e a comunicação.
De acordo com Mendonça15, os conhecimentos exigidos no processo de trabalho do ACS são bastante complexos e diversificados apontando também ao fato destes conhecimentos transcenderem o campo da saúde por requererem a aprendizagem de aspectos que estão presentes nas condições de vida da população e que exigem uma atuação intersetorial.
No 2º semestre de 2004, o Ministério da Saúde em conjunto com o Ministério da Educação lançam o documento: “Referencial curricular para curso técnico de agente comunitário de saúde: área profissional saúde26 ”. Este documento pretende servir como fonte de orientação à construção autônoma pelas escolas de seus currículos destinados a organizarem Cursos Técnicos de formação do ACS.
O Referencial Curricular está direcionado para a preparação de técnicos de nível médio que deverão atuar junto às equipes multiprofissionais que desenvolvem ações de cuidado e proteção à saúde de indivíduos e grupos sociais, em domicílios e coletividades. São mencionados também a atuação intersetorial e o desenvolvimento de ações de promoção da saúde. O curso está estruturado com uma carga horária mínima de 1200 horas e seu acesso está previsto através de três etapas: Etapa formativa I, para todos os ACS inseridos no SUS, independentemente de escolarização e com carga horária de 400 horas. Etapa formativa II, para ACS que concluíram a etapa formativa I e que concluíram ou estão cursando o ensino fundamental, com a carga horária de 600 horas. Etapa formativa III, para concluintes das etapas anteriores que estão cursando ou concluíram o ensino médio, com carga horária de 200 horas. Está prevista ainda no documento, a prática profissional que deve ser incluída na carga horária de cada etapa.


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Vera Joana Bornstein. Concepções que integram a formação e o processo de trabalho dos agentes comunitários de saúde: uma revisão da literatura. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2006/Jun). [Citado em 21/05/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/concepcoes-que-integram-a-formacao-e-o-processo-de-trabalho-dos-agentes-comunitarios-de-saude-uma-revisao-da-literatura/156?id=156&id=156&id=156

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